São Paulo, domingo, 26 de fevereiro de 1995 |
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O morcego encantado
CARLOS HEITOR CONY RIO DE JANEIRO — Em Paquetá, onde em criança passava o verão, durante o Carnaval os meninos se fantasiavam de morcego. Saíamos com a túnica preta de tecido ordinário e a máscara monstruosa que cheirava a cola e papelão.Os meninos mais ricos saíam de chinês, bigodes feitos com rolha queimada, a sombrinha colorida que me enfeitiçava. Eu jamais sairia de chinês, jamais consentiria que meu rosto fosse aviltado com o bigode de rolha queimada. Mas a sombrinha me fascinava. Meu pai cortou o devaneio com poucas e bastantes palavras. Pensei que fosse apelar para um conceito estético, sombrinha de chinês não combinava com morcego de Paquetá, um argumento assim, mas ele se limitou a proclamar que filho seu jamais usaria sombrinha, coisa de mulher. Não era caso de abrir as veias em sinal de protesto. Pelo contrário: peguei-me ao morcego, descobria que ele combinava comigo e eu com ele, não me obrigava a coreografias complicadas. Escondido pela monstruosa cabeça de papelão, eu podia continuar eu mesmo. Ali pela dez horas, colocava a túnica preta e a máscara, ficava zanzando pelas ruas, não chamava a atenção de ninguém, nada fazia para isso, não era o meu gênero e muito menos o meu Carnaval. Até que tudo acabou, não na quarta-feira como no samba do Tom e Vinicius, mas no domingo. Ia desprevenido pela rua Tomás Cerqueira, em direção à praia de São Roque, quando inesperadamente surgiu uma caveira. Eu tinha pavor, pânico das caveiras. Aceitava tudo no Carnaval —e mesmo fora dele— mas caveira era demais. A rua estava deserta, só nós dois, caveira e morcego. Ela quis se engraçar comigo, faríamos uma dupla folgazã. Encharcado de suor, afônico, corri desesperado. Já me haviam dito que não adianta fugir da morte: ela nos espera no final de cada fuga, no fim de cada caminho. Estou correndo até hoje. Alguns amigos reclamam de minha pressa, estou sempre indo para outra direção, dou a impressão de que não estou em lugar algum. Menino encantado no morcego de Carnaval, continuo fugindo, não da caveira —da qual não tenho mais medo— mas do morcego. Texto Anterior: Pau neles Próximo Texto: Dona Joaninha e o Estado protetor Índice |
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