São Paulo, domingo, 26 de fevereiro de 1995
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O efeito tango vem a cavalo

ALOIZIO MERCADANTE

A Lei da Conversibilidade, também conhecida como Plano Cavallo, foi uma resposta conservadora à pesada herança deixada pelas duas hiperinflações de 1989 e 1990, que destruíram o padrão monetário e promoveram uma dolarização generalizada na economia argentina. Em abril de 1991, a Argentina legalizou uma reforma monetária imposta pelo mercado, instituindo um caráter bimonetário ao país, que implicou em câmbio fixo e uma perda da soberania monetária. A recuperação das funções da moeda ocorreu porque o peso passou a ser uma representação do dólar e só.
Nessas condições, o programa de estabilização significou o retorno a um regime monetário primitivo, onde a paridade com conversibilidade entre o peso e o dólar foi associada à impossibilidade de o Estado financiar seu déficit através de emissão monetária, além da proibição de qualquer forma de indexação, inclusive dos salários.
Paralelamente, o governo Menem aprofundou as reformas estruturais neoliberais, a privatização ampla das empresas estatais e a abertura comercial.
O cenário internacional favorável com a renegociação da dívida externa, liquidez e juros reduzidos permitiu a atração de US$ 35 bilhões de capital do exterior. A conversibilidade articulada com reformas estruturais liberalizantes passou a se sustentar em um tripé: equilíbrio fiscal, equilíbrio na conta corrente com reservas cambiais elevadas e confiança dos agentes econômicos.
No entanto, a Argentina consome mais do que produz e paga a dívida externa com novas dívidas ao longo de todo esse período. Esse processo gerou uma crise cambial deflagrada a partir da crise mexicana, uma crise fiscal potencial e uma crise bancária em andamento.
A crise cambial é resultado da abertura comercial associada ao câmbio fixo, em um contexto em que a inflação acumulada no período é de 52% e a defasagem cambial é estimada em 35%.
Para 1995, as estimativas extra-oficiais projetam um déficit em conta corrente de US$ 16,45 bilhões, sendo US$ 8,5 bilhões de serviço de dívida, US$ 6 bilhões de déficit comercial e US$ 2 bilhões de outros serviços. Um déficit que não tem condições de ser financiado na atual conjuntura internacional. Parte do problema é privado, mas o que resta de patrimônio público, como as usinas nucleares Atucha 1 e 2 e uma hidrelétrica, são incapazes de financiar o rombo projetado e não devem superar US$ 3 bilhões.
A Argentina já teve regimes cambiais semelhantes à Lei de Conversibilidade em 1873, 1885, 1914 e 1930. Em todas essas conjunturas, esse regime cambial paritário, por sua rigidez, foi incapaz, como agora, de responder às dificuldades da conjuntura internacional e teve que ser abandonado.
No plano fiscal, janeiro apresentou uma queda de 6% nas receitas públicas, agravada pelo impacto dos compromissos com a previdência social privatizada, com o período eleitoral e com os incentivos e subsídios fiscais que estão sendo oferecidos ao setor exportador. O governo tem que emitir US$ 1,7 bilhão até março e terá grandes dificuldades para colocar títulos com prazos para depois das eleições.
A crise bancária é a ponta do iceberg. O Banco Central não é o banco dos bancos, é um agente passivo na crise. O índice de inadimplência é elevado e crescente. A perda acelerada de reservas cambiais contraiu a liquidez da economia e fragilizou, primeiro, pequenos bancos atacadistas com carteira de alto risco. Num segundo momento, a crise atingiu os demais bancos atacadistas e inclusive varejistas, onde os pequenos poupadores começam a entesourar suas reservas estimulados pelo próprio Menem. A crise não se alastrou porque o Banco de la Nación, que felizmente não foi privatizado, articulou uma rede de proteção de US$ 1,5 bilhão. Mas o sistema bancário está profundamente fragilizado e dificilmente escapa de um intenso processo de concentração e internacionalização.
Os principais indicadores parecem revelar que o Plano Cavallo é um paciente terminal e que se confronta com o teorema da dupla impossibilidade: a desvalorização da moeda ou uma eventual deflação promovida por brutal recessão.
Em ambas hipóteses, as consequências econômicas e sociais são dramáticas. A desvalorização do câmbio encontrará uma economia totalmente dolarizada, empresas endividadas em dólares e as famílias com dívidas estimadas em US$ 12 bilhões. Ninguém quer a desvalorização. Em qualquer cenário futuro, uma profunda recessão é inevitável nesse contexto dos mercados "submergentes". O Estado perdeu capacidade de regulação e instrumentos básicos de política econômica.
O futuro econômico da Argentina depende do apoio externo —que dificilmente repetirá a "generosidade" ao México porque o governo dos EUA não tem os mesmos interesses estratégicos. A Argentina não tem mais petróleo e com as últimas privatizações previstas só restam a Casa Rosada, a Plaza de Maio e o Obelisco como patrimônio público.
O presidente FHC foi ao encontro de Menem com todo seu ministério, subiu no palanque de campanha e aprovou apenas a construção de uma ponte e um seminário. A Argentina é o segundo maior importador do Brasil, com mais de US$ 4 bilhões ao ano. Não parece que a melhor política para o Brasil seja a interferência nas eleições internas, não é papel de um presidente do Brasil se reduzir a cabo eleitoral. Mais grave é que o governo FHC parece querer dar oxigênio para as eleições de Menem, adiando as medidas de correção do Plano Real para maio.
O Mercosul deve coordenar ações de política econômica, mas não subordinar os problemas imensos que se projetam para as duas nações aos interesses imediatistas de um candidato à Presidência. A Argentina precisa de medidas emergenciais e o Real também. Aqui, as condições são muito mais favoráveis, mas a estabilidade não é problema resolvido e a evolução da crise argentina agravará o cenário internacional.
Particularmente preocupante são as informações de que o Brasil poderá adotar no futuro próximo a conversibilidade da moeda, que representaria uma rigidez cambial absoluta e a perda da soberania da moeda numa conjuntura internacional de instabilidade e incerteza.

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