São Paulo, terça-feira, 28 de fevereiro de 1995
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Walter Lima Jr. critica Cinema Novo

INÁCIO ARAUJO
ENVIADO ESPECIAL AO RIO

"Menino de Engenho", de 1965, lhe dá um lugar de destaque no Cinema Novo. Mas Lima Jr. opõe-se à postura de grupo e torna-se com o tempo um crítico dos caminhos do cinema brasileiro: defende o cinema "popular", rejeita a Embrafilme, ataca o que considera atitudes xenofóbicas.
Nesta entrevista à Folha, Walter Lima Jr. sustenta que Glauber "ficou muito aquém do cinema que sonhava" e que se tornou um "prisioneiro de si mesmo". Fala também dos "enganos trágicos" do Cinema Novo: não compreender a situação do cinema em seu tempo, optar por uma postura "fisiológica", desprezar a experiência da Vera Cruz.
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Folha - Com frequência, a cinefilia é coisa de solitários. Com você foi assim?
Walter Lima Jr. - Eu nunca fui um garoto recolhido, era superespoleta. Me metia em mil confusões, estava sempre de castigo em casa, mesmo na escola.
Folha - Como você considerava os filmes americanos?
Lima Jr. - No início, minha relação foi toda com o cinema americano. Mas também vi um filme do Abel Gance, "'Beethoven". Mas o meu prazer do cinema era ligado ao que eu via dos americanos. Acho que isso na minha visão de cinema é determinante.
Folha - Mesmo na época do Cinema Novo?
Lima Jr. - Mesmo nos anos do Cinema Novo ou um pouco antes, que foram momentos muito importantes de minha formação, política e existencial. Essa idéia da emoção, do espetáculo, nunca me desgarrei disso. Acho essencial para o cinema. O que eu procuro fazer nos meus filmes é isso.
Folha - No tempo de cineclubista isso não te colocava em conflito com as pessoas?
Lima Jr. - Às vezes eu me confrontava com uma coisa muito fria, intelectual, distante do meu prazer original de ver filmes. Quando eu dizia, mas tal filme é assim, a pessoa dizia: mas que bomba, que porcaria.
Folha - Havia um confronto tipo prazer versus arte?
Lima Jr. - O cinema não nasceu numa biblioteca, mas num parque de diversões, ele tem um lado meio popular, vulgar. Uma santa vulgaridade! Botavam aqueles nickelodeons ao lado da roda gigante, do trem fantasma, e aqueles caras que eram donos dos parques é que viraram os grandes produtores. Na origem dele está isso. Eu tenho essa visão de cinema e eu gosto de ter. Acho que o Truffaut tem um pouco disso...
Folha - Como você chegou ao cineclubismo?
Lima Jr. - Bem, eu achava que eu era a única pessoa que gostava de cinema no mundo. Achava que só eu tinha aquela curiosidade. Garoto ainda, 11, 12 anos, eu morava em Niterói e a maioria dos filmes custava um pouco a passar lá. Um dia, li no jornal que ia passar esse filme "Desencanto", do David Lean, e eu vim aqui ao Botafogo, no cineclube do Ebape (Escola Brasileira de Administração Pública). Fiquei fascinado com o que aconteceu depois, porque tinha um grupo de pessoas que conversavam sobre o filme.
Folha - Quem você encontrou nessa época?
Lima Jr. - A primeira pessoa que eu conheci foi o Leon (Hirszman). Eu tinha uns 16 anos. O Leon, Paulo César Saraceni, Cacá Diegues, David Neves, esses aí eu conheci em cineclubes.
Folha - O encontro com Glauber como foi?
Lima Jr. - Eu conheci o Glauber quando ele veio ao Rio para montar o "Barravento". Eu estava na "Tribuna da Imprensa" e vi uma pessoa falando com o Eli Azeredo, umas palavras que eu não costumava ouvir, tipo "embananado" e não sei o que, e fui ver quem era. Era o Glauber.
Fiquei fascinado com a figura do Glauber e continuei a manter contato com ele. Nossa relação se deu em torno de uma teoria do espectador brasileiro. Ou seja, a visão que se tinha do cinema era uma visão colonizada e era preciso quebrar essa visão, buscar um olhar próprio.
Folha - Você tinha uma formação de colonizado?
Lima Jr. - Total. Ele também, entendeu? Só que ele se insurgia e eu era uma pessoa inteiramente fascinada com aquilo. Mas a palavra dele era muito original.
Folha - Esse discurso ele levou para os filmes?
Lima Jr. -No meu entender a teoria do Glauber é mais interessante do que o cinema dele. O Glauber não fez o que poderia. Ficou muito aquém do que sonhava.
Com "Deus e o Diabo", ele inventou uma teoria para explicar que a Kodak não fazia filme para o Terceiro Mundo e que a luz dos trópicos tinha que ser filmada daquela maneira. Enfim, ele criou uma teoria para justificar aquela precariedade.
Mas a precariedade se devia à precariedade do fotógrafo e das condições de filmagem. Agora, tem uma originalidade fulgurante. A pessoa dele, não o cinema dele. O cinema dele... Qualquer garoto que vir o cinema dele pára o filme na metade e vai embora. Nós é que veneramos isso.
Folha - Ele passava por uma distinção entre Primeiro e Terceiro Mundo.
Lima Jr. - E eu não consigo separar o cinema brasileiro do que se faz lá fora. Para mim, cinema é cinema. Então, houve um discurso tentando buscar uma coisa internacionalista, que na verdade escondia uma xenofobia exacerbada.
Folha - O que você aprendeu com "Deus e o Diabo"?
Lima Jr. - Eu vi ali que o cinema —esta a lição do Rossellini— nasce da possibilidade de se reinventar a partir do impossível. Você abandona todos os dogmas.
Folha - O Glauber tirava muita coisa da precariedade?
Lima Jr. - Ele era uma pessoa extremamente cinematográfica. Mas, na ânsia de colocar a sua linguagem em ação, ele abandonava coisas absolutamente essenciais. Por exemplo, se você tomar a literatura do Glauber... Eu posso aqui estar criando uma polêmica, mas acho que o Glauber não sabia escrever. Por isso ele inventou uma outra língua em que ele sempre pudesse escrever certo, como ele fez em cinema.
Folha - E isso influenciou muita gente?
Lima Jr. - Eu penso que o Cinema Novo não foi bem entendido pelas pessoas que participaram dele. Para mim, ele seria totalmente novo quando saísse do gueto e aceitasse a internacionalização. O cinema estava passando a ser internacional e nós ficamos fora disso. Aí se inventou —com a cumplicidade do militares— a Embrafilme.
Folha - A Embrafilme foi um engano?
Lima Jr. - A Embrafilme é o atestado do engano.

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