São Paulo, terça-feira, 28 de fevereiro de 1995
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"Eu sou culpado pela crise mexicana"

ARNALDO JABOR
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Normalmente, eu não me explico. Mas, no último sábado, meu amigo Fernando de Barros e Silva escreveu um artigo na "Ilustrada" me criticando por eu ter feito uma matéria que era um "nhenhenhém adesista".
Ele denunciava com coragem e brilho que eu tinha virado um governista e que eu fazia parte de um grupo de "áulicos e bajuladores" que cometeram o crime de ir jantar com Vargas Llosa (e FHC!) na casa do mercador de livros Luis Schwarcz, festa para a qual, infelizmente, Fernando Barros não foi convidado.
Meu amigo afirmou também, com jocunda ferocidade, que eu "tenho o direito de dizer o que penso" (obrigado) e que "talvez por isso (!) tenha aposentado meu senso crítico". Então, emocionado por esta admoestação fraterna, resolvi me explicar. Tudo pela amizade. Que iria eu fazer em minha defesa? Claro que logo entrei na falsa personagem progressista do "esquerdista complexo", do "falso profundo", aquele que fingia ver a "multilateralidade do mundo". Uso muito esta fantasia.
Eu ia dizer que eu não era propriamente um adesista do governo FHC, mas apenas tivera a desgraça de achar que o Plano tinha um caráter renovador de velhas estruturas, que certas coisas que já tinham sido progressistas, hoje eram apenas arcaísmos que o tempo (este reacionário) corroeu.
Eu ia, como um clandestino bajulador (atividade em que sou mestre), mostrar minha carteirinha vermelha de velho combatente da esquerda, com todos os carimbos da UNE, passando pelos partidos comunistas e até por modesta e breve ajuda na luta armada.
Eu ia insinuar também que a razão maior para o ódio do grupo linguístico PT-CUT era o fato de que FHC, ao praticar uma "política do possível", tinha frustrado o glamour utópico e sagrado das velhas esquerdas.
Infelizmente, tudo muda; só o "esquerdismo" não muda.
Eu ia dizer que a "esquerda-qualquer-coisa" (eu me considero da "esquerda-jóia") não aprendia com os próprios erros e que vendo Rui Falcão falar ou mesmo o bom Fernando Barros pensar, eu me sentia docemente levado ao ano de 1963, pouco antes da UNE pegar fogo.
Eu ia dizer que Marx achava que a credulidade (ou a esperança) era o mais simpático dos defeitos e que infelizmente eu acreditara (oh, crime nefando!) que a equipe do governo tinha real desejo de melhorar o país. Tenho de pagar por esta ingenuidade de que o vigilante amigo me alertou. Eu ia ostentar minha falsa boa-fé, eu ia também repetir, na minha obsessão cega, que muita gente quer que o México se dane para confirmar suas teorias.
Eu ia dizer também que ficara indignado com a falta de generosidade dos jornalistas que fingiram não ver que FHC passou os últimos 40 dias saindo das cascas de banana que um Congresso de chantagistas jogou para ele cair e que não ver isso é tão grave quanto "avalizar a qualquer preço um governo que começa", como bem me acusa Fernando.
Eu ia dizer que não tinha aposentado meu senso crítico, que criticismo não tem como alvo apenas o governo, mas que eu o usava também contra os que discutiam o país de forma stalinista e burra, com um "wishful thinking" de cabeça para baixo, querendo o fracasso nacional para provar suas teses, ou, mais grave, para ter assunto.
Eu ia afirmar que achava que FHC estava numa missão radical e que era muito mais radical enfrentar uma complexidade de alianças e mergulhar no mar sujo da política brasileira que repetir truísmos sobre a miséria, como se alguém tivesse "copyright" do subdesenvolvimento.
Eu ia mesmo ousar, na minha desfaçatez, afirmar que muitas críticas que se fazem à equipe do Executivo são apenas inveja do seu nível acadêmico, que é "surnoisement" confundido com viadagem européia, mecanismo muito comum no fascismo, que acha a inteligência um perigo. Eu, na minha pequenez, ia apontar que a tradição ideológica brasileira tem horror às nuances e que muitos tinham saudade de um sectarismo viril, confundindo simplismo com radicalismo.
Eu, sinistro como um corvo, ia aventar que ninguém teria estranhado se o PSDB tivesse se aliado ao PMDB em vez do PFL (ou Jader Barbalho é melhor que ACM?).
Eu, destilando gosma, ia "nhenhenhar" que não vira ainda uma só crítica profunda ao projeto atual ou uma escassa alternativa de caminho, senão este enfrentamento do Brasil real. Eu ia babujar meu blablablá de que ninguém dissera ainda como Lula iria governar se tivesse sido eleito (com adesão de que Congresso, de que partido?)
Eu ia dizer também que... mas aí desisti, subitamente cansado da negra missão de trair meus companheiros. As críticas de Fernando bateram fundo na minha culpa e eu então, cansado de minha farsa, fui invadido por alegria e alívio! Algo aconteceu! Em lágrimas, resolvi confessar minha terrível verdade. Rasguei a minha fantasia, "meu palhaço cheio de laço e balão", e resolvi confessar que realmente a "teoria conspiratória da história" que rege o pensamento crítico brasileiro está certa!
Sim, é verdade: a única maneira de se conhecer a história é pelo método paranóico da "esquerda-qualquer-coisa", ou seja, só a desconfiança permite entender a realidade. Está certa a "teoria do grande complô". Há um grande complô que rege o mundo, montado por Wall Street. Há um grande complô e, tenho de confessá-lo, eu faço parte dele. Há no país uma cascata de adesões sucessivas.
Cooptado pelo luxo e volúpia do capitalismo, seduzido pela fome de gozar depois de tantos anos de oposição, FHC aderiu ao PFL, que sabidamente é o braço fisiológico do Consenso de Washington. Portanto eu, tendo aderido a FHC, como tão bem apontou Fernando Barros, virei parte da grande conspiração contra o bem e o povo da América Latina.
Foi bom o que aconteceu. Eu estava cego, levado pela dança do ventre dos economistas fascistas (por mais que eles finjam uma seriedade social para maquiar sua prostituição). Alertado pelo zelo de Fernando Barros, meus olhos se abriram e eu pude ver de novo a luz da sólida verdade nacional. Seduzido pelo ouro de Washington e pelo mercado, eu tinha aposentado minha capacidade crítica e meu amor à justiça.
Portanto, me arrependo e, de lágrimas nos olhos, prometo que nunca mais irei a jantares na casa de Luis Schwarcz e começo minha autocrítica confessando que eu sim (como negar?) sou um dos culpados pela derrocada econômica do México.

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