São Paulo, terça-feira, 28 de fevereiro de 1995
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Reforma do Estado _o que é isto?

FÁBIO KONDER COMPARATO

Reforma do Estado —o que é isto?
Ficaremos submetidos à estupidez dos políticos ou seremos capazes de tomar em mãos o futuro?
Uma das características mais salientes da mentalidade brasileira é o encantamento retórico. O fascínio com as fórmulas verbais sempre foi mais forte, entre nós, do que a precisão nos conceitos ou a coerência nas idéias.
A expressão que faz hoje a unanimidade dos pronunciamentos políticos, como autêntico slogan, é "reforma do Estado". Do presidente eleito ao esquerdista mais "enragé", passando obviamente por todo o grupo liberal e as hostes empresariais, só se fala nisso.
A definição do conteúdo dessa locução deixa, porém, muito a desejar. Geralmente, o que se subentende com o seu uso pode ser decomposto em três itens: a privatização, a desregulamentação e a reforma financeira (denominada em economês "reforma fiscal").
O sentido da privatização pode ser perfeitamente contraditório, de um político para outro. Os neoliberais, como sabido, referem-se com essa palavra à renúncia pelo Estado de qualquer iniciativa empresarial, enquanto a esquerda costuma usar o vocábulo em sentido pejorativo, para indicar o domínio do aparelho estatal por grupos privados.
A desregulamentação, que no passado era denominada desburocratização, é usada em acepções diferentes, no fundo e na forma. Para uns, ela significa, simplesmente, a redução do número de leis e decretos expedidos pelos órgãos públicos. Para outros, a supressão de exigências e formalidades no exercício de atividades profissionais. Para terceiros, enfim, ela designa a eliminação das reservas de mercado e a instauração do livre câmbio.
Finalmente, os propugnadores da reforma financeira dividem-se em fiscalistas e federalistas. Os primeiros entendem que é possível instaurar um equilíbrio financeiro durável com a mera reforma tributária. Já os segundos recomendam, em geral sob a falsa idéia de alteração do "pacto federativo" (como se a nossa artificiosa federação tivesse sido criada por convenção entre Estados independentes), uma nova repartição de competências entre a União, os Estados, o Distrito Federal e os municípios. Nem uns nem outros, porém, têm o descortino (ou a coragem) suficiente para incluir na agenda de reformas constitucionais a criação de um federalismo de regiões e áreas metropolitanas, dotadas de autonomia política e não meramente administrativa.
Como o novo presidente se declara adepto fervoroso da "reforma do Estado", chega-se a esboçar um movimento em prol de sua reeleição (a "menemização" da política brasileira, segundo alguns maledicentes), sob o argumento de que o sucessor de FHC poderá paralisar ou reverter o processo. É bom lembrar que o PSDB foi o único partido a fechar a questão contra o presidencialismo, por ocasião do plebiscito. O que demonstra, mais uma vez, a nossa incoercível vocação macunaímica. A súbita conversão do novo presidente e de seu partido, de um parlamentarismo britânico a um presidencialismo norte-americano, só é equiparável, em rapidez de manobra, à mudança de orientação política do seu ministro da Cultura após as eleições. Num e noutro caso, a sofreguidão faz a razão.
Sem dúvida, todos os temas acima apontados são importantes, malgrado a incoerência que flutua em torno de sua discussão. Mas para que essa decantada "reforma do Estado" seja mais efetiva, ela deveria incluir duas outras questões da mais decisiva importância para o desenvolvimento nacional, objetivo último de toda a organização política. Quero me referir à democracia participativa e à institucionalização da função planejadora.
Programadas por longa tradição, que deita raízes no passado colonial, nossas mentes teimam em separar radicalmente o Estado da sociedade civil, como se tratasse de duas realidades adjacentes, mas incomunicáveis. No entanto, a sociologia política, que o novo presidente declara haver lecionado em Sorbonne, nos ensina que as sociedades políticas mais bem-sucedidas da atualidade sempre tiveram uma dose razoavelmente forte de participação direta dos cidadãos, na decisão das grandes questões de interesse público e no controle do funcionamento dos órgãos estatais.
As recentes experiências de orçamento participativo, principalmente nas prefeituras petistas de Porto Alegre e Belo Horizonte, demonstram a importância crucial dessa "cidadania ativa" para a elevação dos nossos costumes políticos.
Estreitamente ligada a esse tema é a questão do planejamento institucional. Trata-se, no fundo, de saber se as políticas públicas de longo alcance vão continuar a ser limitadas pelo prazo do mandato presidencial (o que suscita o atual movimento de reeleição do presidente) e negociadas pelos parlamentares em função de seus interesses pessoais, ou se elas devem ser decididas por um órgão estatal autônomo, em estreita colaboração com os setores mais representativos da sociedade civil.
Cuida-se, em suma, de decidir se vamos continuar submetidos ao egoísmo e à estupidez dos nossos políticos, ou se seremos capazes de tomar em mãos o nosso futuro para construir um desenvolvimento realmente humano.

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