São Paulo, terça-feira, 28 de fevereiro de 1995
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A cultura não está resistindo aos neoliberais

OSWALDO MENDES

Na interpretação de "Estado, Capitalismo e Democracia na América Latina", livro de Atilio Baron, da Universidade de Buenos Aires, o professor Francisco Oliveira observa que o discurso neoliberal sobre a crise do Estado "parece ser o cumprimento do profético pessimismo tocquevilliano: a democracia não está resistindo ao capitalismo". Sob o disfarce social-democrata, o neoliberalismo quer nos vender a falência do Estado como pedra de toque dos problemas gerados, de fato, pela acumulação selvagem do capital nas últimas décadas e pelo abandono das utopias humanistas —o marxismo entre elas.
Dragão da maldade, o déficit público é enfatizado não para denunciar a má gestão do Estado por corruptos, corruptores, oportunistas ou simples incompetentes de vários credos, mas para condená-lo a um papel de coadjuvante de última fila na condução dos interesses públicos. "Diminuir o tamanho do Estado" é a bandeira neoliberal e social-democrata a tremular nos céus da pátria, salve, salve! Mais que uma bandeira, trata-se de uma armadilha. E as vítimas, já se sabe quem somos.
Em janeiro, artistas de teatro e dança conversaram em São Paulo com o ministro Francisco Weffort e, de quebra, com o secretário da Cultura do Estado, Marcos Mendonça, que chegou sozinho no final do encontro (e esta é a impressão que deixou, a de um homem só com o seu desejo sincero de servir e a sua impotência frente a um governador insensível e autoritário).
Com o ministro, foi uma conversa civilizada, em que se procurou saber o que fazer com os recursos existentes. O ministro Weffort (e o governo FHC) não tem uma política cultural definida. Mas ficou claro que a cultura é tema de interesse do governo —se por mais não fosse, o próprio presidente disse isso em seu discurso de posse, o que já é alguma coisa. Depois de quase três horas de conversa, Weffort se despediu deixando algumas esperanças. Tudo bem. De ilusão e de sonho é que se vive.
Saiu o ministro, ficou o secretário. Foram-se as esperanças.
Como Weffort, Mendonça (e o governo Covas) também não tem uma política cultural claramente definida. Mas ao contrário do governo federal, o estadual não tem o menor interesse pela cultura. Nada a estranhar. Quando prefeito da capital, o engenheiro Mário Covas deixou bem claro que a cultura não está entre as suas preocupações e interesses.
O que o secretário disse naquele encontro informal não tem o que tirar nem pôr da entrevista que ele daria em seguida à Folha (30/01). Em síntese, que o Estado (no caso o governo de São Paulo) vai cair fora. Os acontecimentos posteriores —e a desesperada busca de soluções emergenciais feita por Marcos Mendonça para os problemas gerados pela insensibilidade e desinteresse do governador— apenas confirmam os temores dos artistas e dos agentes culturais. Basta ver o que está acontecendo com os teatros, museus e outros equipamentos culturais nas mãos do Estado.
Além disso e não contente em abandonar o papel que lhe cabe, o Estado (repito, o governo de São Paulo) quer ser mais um atravessador no mercado. O pouco que há de investimentos privados na Cultura o Estado quer abocanhar e —com o manto de gerente-vestal que, dizem os neoliberais, não lhe cai bem— vai competir com os produtores culturais.
Parêntese. Chamo aqui de produtores culturais não os marqueteiros de plantão (que vicejam à sombra das leis de incentivo à cultura) e sim os próprios artistas —que no caso do teatro, de Fernanda Montenegro ao mais obscuro ator, saem com seus projetos debaixo do braço à cata de apoio e patrocínio em empresas e agências de publicidade. Pois bem, a Secretaria de Estado da Cultura quer fazer isso pelos artistas.
Quanta bondade! A secretaria está convencida de que os artistas não sabem passar o chapéu e quer mostrar como é que se faz. Com todo o respeito, mas nessa atividade às vezes humilhante o artista tem experiência de alguns séculos. E não será nem menos brilhante e nem menos arriscado, para o artista, bater com seu projeto no balcão do governo atrás dos poucos recursos recolhidos em outra oportuna operação Robin Hood dos coletores oficiais.
Plagiando o pessimismo tocquevilliano, no governo de São Paulo a cultura não está resistindo ao capitalismo do "Estado neoliberal". Mas ao contrário do que reza a cartilha do engenheiro Mário Covas, as questões da cultura passam, sim, pelo Estado tanto quanto a educação, porque há papéis que só o Estado pode assumir. E não é exatamente o papel de atravessador e muito menos o de mero intermediário devolvendo para a sociedade as tarefas e os custos que cabem ao Estado assumir.
Agora, se é para radicalizar a febre privatizante do oportunismo neoliberal também nesse campo, então que se tenha a coragem de acabar de vez com a Secretaria de Estado da Cultura, assumindo perante a história o ônus dessa insanidade. Para que manter uma secretaria que pode ser substituída por um vaso de antúrios? Por que fingir que existe uma Secretaria de Estado da Cultura? Que sejam fechadas as oficinas culturais e os poucos teatros do governo, que sejam mandados para casa os músicos da sinfônica, que sejam lacrados os museus e bibliotecas, que se devolva ao proprietário o prédio ocupado por uma secretaria sem função. Se a herança recebida pelo governo Covas é o caos —e ninguém duvida—, há que se temer pela herança que ele deixará no campo da cultura.
Para reflexão —e na esperança de que sejam repensadas as verdades do neoliberalismo e se aposte em alguma fagulha de humanismo—, tomo as palavras de Antunes Filho, o mais consequente diretor de teatro do país: "A educação, desde 5.000 anos, tem formado escribas para servir os sacerdotes e o Estado. A liberdade e a consciência necessárias à democracia só a cultura dá. A educação é servil. A cultura é libertária".

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