São Paulo, quinta-feira, 2 de março de 1995
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Pulp Fiction

OTAVIO FRIAS FILHO

Dizem que maus livros dão bons filmes, e vice-versa. "Pulp Fiction" ("Tempo de Violência"), do americano Quentin Tarantino, que estréia com inexplicado atraso amanhã, pertence ao primeiro grupo já pelo título, literatura barata.
Mesmo quando visto em vídeo, o impacto do primeiro filme desse diretor, "Reservoir Dogs" ("Cães de Aluguel", 1992), é enorme. A violência sem conclusão moral, o ineditismo das tomadas e o atropelo do ritmo envelhecem tudo o que já se viu antes.
Até Spielberg, em comparação, parece lento. Nos filmes seguintes, inclusive "Pulp Fiction", Tarantino repete e dilui a fórmula original, talvez porque não saiba fazer outra coisa, talvez porque ela é, de fato, um filão extraordinário.
A linha evolutiva do cinema se traduz em narrar cada vez mais coisas em menor tempo. O público aprende a "ler" mais depressa; nexos e digressões, antes necessárias, desaparecem.
Os filmes de Tarantino levam essa tendência a um limite quase insuportável. O roteiro é retalhado em fatias que aparecem como se fora de ordem. Não se trata de "flash-backs", mas de pontos de vista narrativos que são concomitantes, embora separados.
Mais até do que as outras artes, o cinema precisa lutar contra a corrosão do hábito, que leva o público ao tédio e à incredulidade. "Pulp Fiction" surpreende tantas vezes que não há tempo para isso; submetida, horrorizada, a platéia crê.
As histórias, os personagens não diferem de um filme para outro, e nem precisaria: estão ali, também, só para excitar uma audiência que requer doses maciças de "verdade" para reingressar no estado ideal de qualquer platéia, a inocência.
Em bairros imundos e deteriorados, traficantes matam-se impunemente (a polícia nunca prende ninguém). No centro da trama, geralmente está um casalzinho romântico, que também rouba e mata. Pode haver uma moral romântica, mas nunca uma moral propriamente dita.
Num mundo sem ideologias, como se constata com satisfeito otimismo atualmente, não é de estranhar que os filmes dispensem sentido moral; todos nós o dispensamos. Não há mais perigo vermelho, nem discos-voadores.
Os filmes de guerra saíram de moda, os épicos e as comédias também, nem as crianças aguentam mais os monstros de filme japonês. Romantismo sim, desde que entre casais do mesmo sexo.
Sobram os personagens de Tarantino. Quem são esses Romeus e Julietas que trocam dólares e pacotes de cocaína entre juras de amor, se não os excluídos do nosso admirável mundo novo de software e integração de mercados?
Quem se interessa por cinema tem que ver "Pulp Fiction". Quem não se interessa, por ter afazeres mais sérios a tratar, não pode perdê-lo.

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