São Paulo, sábado, 4 de março de 1995
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Sopapos linguísticos

JOSUÉ MACHADO

O filólogo português Antônio Cândido de Figueiredo (1846-1925) e o escritor e também filólogo brasileiro Heráclito Graça (1837-1914) quase trocaram sopapos por causa da grafia de uma palavra: percentagem ou porcentagem? O luso defendia percentagem, o brasileiro, porcentagem. "Homessa!", exclamava um. "Co'os diabos?", obtemperava outro. (Eles usavam expressões como essas e palavras como "obtemperar".)
Não se polemiza mais por essas coisas, como duelaram o jurista e senador Rui Barbosa (1849-1929) e o filólogo Ernesto Carneiro Ribeiro (1839-1920) na maior de todas as batalhas por "nosso formoso idioma pátrio", como escreviam então, em torno do Projeto do Código Civil Brasileiro. Carneiro Ribeiro reviu o texto; Rui Barbosa o corrigiu; Carneiro Ribeiro estrilou e corrigiu as correções; Rui Barbosa então publicou poucos meses depois as quase 900 páginas da demolidora "Réplica". Tudo isso de 31/1/1902 a 31/12/1902. Em 1905, Carneiro Ribeiro volta à batalha com sua monumental "Tréplica", de mil páginas. Nessa polêmica discutiram-se quase todas as questões da língua. Rui revelou-se brilhante, mas Carneiro, que havia sido professor dele e de Castro Alves, sustentou melhor seus pontos de vista, apesar do estilo pesado como a alma de nossos políticos.
Perto dessa, a polêmica entre Figueiredo e Graça em torno de porcentagem/percentagem foi uma rusgueta insignificante, bem menor do que, por exemplo, a que o Maluf sustenta com os fumantes, cuidando tão zelosamente da saúde pública, que bom. Mas o leitor Renato Luz, de Uberaba (MG), pergunta por que esta Folha e o "Estadão" preferem porcentagem, embora os dicionários registrem "percentagem".
Eles também registram porcentagem. A expressão latina "per centum" está na raiz de "percentagem". Era o que argumentava de pés juntos Figueiredo, e portanto, dizia ele, não me venhas de borzeguins ao leito. Alguns sábios também preferem essa forma, pela mesma razão latina. Heráclito Graça dizia que a preposição latina "per" tomou a forma de "por" em nossa língua querida e malfalada, e que ninguém, nem mesmo o senador Ernandes Amorim, com sua carreira, sim, carreira, cheia de brilho, diria "per cento". Então, perguntava ele já nervoso, por que dizer "percentagem"? "É porcentagem e acabou-se tudo."
Figueiredo sorria-se e redarguia:
"Então por que não rediges nem locutas 'porfilhar', 'porante' e 'pormeio', em vez de perfilhar, perante e permeio, ó pá?"
E ficaram nessa lengalenga. O fato é que nossas autoridades jamais dizem: "Quero meus vinte per cento!"
Há quem diga que a analogia com por cento é pouca razão para justificar a forma porcentagem. Talvez seja. No inglês se escreve "percentage", mas também 'per cent", porque os ingleses absorveram muita coisa do latim com caroço e tudo e mantiveram a forma original. O francês escreve "percentage" e também "pourcentage"; o italiano, "percentuale"; o espanhol, "porcentaje".
Mais tarde, Manuel Ida Said Ali (1861-1953), grande autoridade filológica, defendeu muito bem sua preferência por "porcentagem", com base na analogia e na história, no que foi seguido por vários outros especialistas, e essa forma passou a firmar-se, como previu o filólogo Júlio Nogueira, embora preferindo percentagem.
A discussão tão proveitosa para o mundo murchou a partir de 1943, quando o "Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa", da Academia Brasileira de Letras, oficializou as duas formas, registrando percentagem, percentagista, percentil, percentilagem e percentual. E também porcentagem, porcentual e o substantivo porcento, que o Aurélio ignora, mas o Aulete anota como termo de pescadores, que significa importância recebida proporcional à venda; taxa ou quantidade que determina essa importância. Claro que não se confunde com a locução "por cento", geradora de porcentagem, palavra antiga: Machado de Assis a usou várias vezes. O Aurélio, aliás, registra porcentagem como proveniente da locução "por cento + agem", e percentagem, obviamente, do latim "per centum". Valem ambas, portanto.
O "Manual da Redação da Folha" contém o verbete "porcentagem", mas nele registra "percentagem", trombando com o indiscutível "por cento". O do "Estadão" determina o uso de porcentagem e porcentual. E não se fala mais nisso, porque porcentagem chegou na frente empurrada pela analogia, assim como a mudernidade chegará empurrada... Deixa pra lá.

JOSUÉ R.S. MACHADO é jornalista, formado em línguas neolatinas pela PUC-SP. Colaborou em diversos jornais e revistas.

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