São Paulo, segunda-feira, 6 de março de 1995
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Esquerda-jóia virou 'governista qualquer coisa'

FERNANDO DE BARROS E SILVA
ESPECIAL PARA A FOLHA

"Hoje em dia a classe está cheia de homens progressistas, ninguém mais ávidos do que eles para seguirem as novas tendências. Essa classe está sempre na última moda. Ninguém é capaz de mudar mais depressa suas ideologias, roupas, formas de convívio social e hábitos do que o pequeno-burguês. Ele é um novo Proteu, cuja capacidade de aprender vai até a perda da própria identidade. Sempre fugindo do que envelheceu, ele corre atrás de si mesmo".
(Hans Magnus Enzensberger, em "Com Raiva e Paciência")

Arnaldo Jabor é mesmo irrefutável. Ele diz que normalmente não se explica, o que é fato. Seus textos jornalístico-ficcionais não funcionam no registro da argumentação. Costumam ser feitos a partir de uma profusão de metáforas exasperadas, digressões teatrais e tiradas sarcásticas —tudo banhado por um tom invariavelmente trágico e confessional. Muitas vezes conseguem ser sedutores nesse seu esforço aparentemente sincero de "mea culpa", nessa tentativa de submeter o autor à prova de uma autocrítica radical e hiperbólica.
Ocorre que o articulista tem usado este ardil para temperar sua adesão ampla, geral e irrestrita ao governo FHC. E aí tem ficado cristalino para muitos que a tal "mea culpa" não passa de verniz para enfeitar sua atual atração pelo jornalismo chapa-branca.
Foi isso o que aconteceu no artigo "Eu sou culpado pela crise mexicana", publicado na última terça, no qual o autor pretendia rebater observações que fiz a respeito de sua obsessão governista.
O que faz Jabor? Evoca seu passado de esquerda, suas utopias de juventude, suas passagens pela UNE, sua proximidade com o Cinema Novo, sua atração pelo discurso libertário, tudo isso para, no movimento seguinte, desqualificá-los em bloco, não como alguém que renega o passado (afinal é tão chique ter sido de esquerda), mas como uma consciência superior que, em sintonia com os que chegaram ao poder, evoluiu para o "pensamento reformista" e aderiu à "política do possível". Lendo-o, chegamos a lembrar o Riobaldo de Guimarães Rosa, que dizia ser a "mocidade tarefa para mais tarde se desmentir".
O leitor mais atento, no entanto, tem boas razões para desconfiar da seriedade desse movimento que vai da "cegueira esquerdista" de ontem para o "realismo iluminado" de hoje. Ele diz que era da "esquerda-jóia". Parece que agora virou "governista qualquer coisa". Como nunca foi suficientemente crítico, sua autocrítica continua sendo o que sempre foi —adesão desinformada às "novas tendências".
É por isso que se torna aborrecido ouvir coisas do tipo "eu sou o culpado pela crise mexicana" quando o que está por trás dessa gracinha é a defesa de um governo que até bem pouco tempo tinha no México um paradigma.
Se a gente também quiser, como Jabor, brincar de ser sarcástico, pode dizer, por exemplo, que ele transformou-se numa espécie de acionista majoritário da Metaforabrás, estatal que, pelo jeito, vai muito bem de saúde e deve ser poupada da lista de privatizações em função de seus feitos.
As ações desta eficientíssima empresa subiram muito na bolsa ideológica do país depois que ela revelou, em plena campanha eleitoral, que a disputa presidencial se travava entre Sartre e o encanador.
Suspeito que, a pretexto de responder ao meu artigo, o articulista esteja se engalfinhando com os fantasmas maldigeridos de seu passado. Só assim se explica que ele diga estar usando seu "criticismo" não contra o governo, mas "contra os que discutiam o país de forma stalinista e burra". Não faz nenhum sentido remover clichês da década de 60 para desqualificar hoje os que pensam não ser tarefa de jornalistas sair por aí elogiando governos e poderosos.
Nada mais sintomático, neste sentido, do que o artigo que ele escreveu sobre a Rede Globo (Ilustrada, 2 de agosto de 94).
Cito: "Roberto Marinho é o CPC. (...) A Globo está fazendo um trabalho de reeducação cultural do brasileiro. Na Globo há uma lógica de qualidade que transcende ideologias. A Globo não erra; é uma das poucas coisas que funcionam no país. Se alguma coisa dá certo, deduz-se que outras poderão dar". É preciso comentar?
Aquilo que o autor, talvez impregnado pela influência de Nelson Rodrigues, quer fazer aparecer como expressão de um "homem inatual" (e por isso mesmo incompreendido) é na verdade muito típico e compreensível.
Para entender o articulista importa menos analisar o conteúdo de seu discurso —seja ele de esquerda ou direita— do que acompanhar o zigue-zague ideológico que vai de um lado a outro, conforme as circunstâncias. O segredo de Jabor não está no que ele diz, mas na sua lépida, trepidante, brasileiríssima volubilidade.
PS: Considero encerrada aqui a discussão, que, aliás, para a maioria dos leitores não deve passar de enorme e entediante nhenhenhém.

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