São Paulo, segunda-feira, 6 de março de 1995
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Argélia esconde temor da violência

ROBERT FISK
DO THE INDEPENDENT, NA ARGÉLIA

A guerra não existe em Club des Pins (a 24km de Argel, na Argélia). Não na praia, onde as ondas e a areia fustigam as famílias de classe média, envoltas em echarpes de lã, casacos franceses e botas forradas, nem nas avenidas à beira-mar que ostentam fileiras de Peugeots, Mercedes e BMWs estacionados ao sol da tarde.
Atrás dos portões de segurança, perto do palácio presidencial, fileiras de residências novas garantem à elite governamental, jornalistas, altos funcionários e escritores argelinos seu único Xangrilá no país, um minúsculo encrave de segurança em meio ao furacão que se abate sobre a Argélia.
Vigiados por policiais, fora dos muros de três metros de altura coroados por aço e arame farpado para proteger os homens e as mulheres mais odiados pelos islâmicos, se reúnem visitantes diurnos vindos de Argel em busca da tranquilidade (segundo o governo, foram mortos 6.388 civis em 1994).
Lojistas, engenheiros, estudantes e funcionários públicos modestos passeiam pela praia com suas mulheres e namoradas. As mulheres não usam véu; algumas das garotas ostentam longos cabelos esvoaçantes e blusas transparentes que deixam entrever sutiãs pretos, num melancólico toque dos anos 70. Pergunte a qualquer uma sobre a guerra e verá em seu rosto uma expressão de aflição e cinismo.
O funcionário da companhia petrolífera nacionalizada Sonatrech condena os lamentáveis excessos da imprensa estrangeira, a manipulação das potências estrangeiras, o complô internacional que trouxe problemas à Argélia. O técnico argelino que passeia ao lado da esposa rechonchuda indaga por que os jornalistas querem criar problemas na Argélia.
Um engenheiro civil critica os partidos políticos argelinos —entre eles a proibida Frente Islâmica de Salvação— que se reuniram em Roma e concluíram que a violência não resolverá a tragédia argelina. Isto tudo deveria ser resolvido internamente —não se lava roupa suja em público.
Um professor universitário de economia que brinca na praia com a filha culpa a imprensa pelos problemas, mas conclui que a esperança do país é sua juventude.
Mas não foram os jovens que garantiram o grosso dos votos islâmicos nas eleições cuja anulação desencadeou o vendaval que hoje assola a classe média? Perto da casa de chá um grupo deles joga futebol. Há um guarda da Universidade de Argel, um estudante de direito, um balconista e um garçom. Todos menos um são muçulmanos praticantes, mas condenam tanto o governo quanto seus adversários fundamentalistas.
Indagamos, com gentileza, se já haviam testemunhado alguma violência. O balconista contou que estava na loja no momento de um atentado suicida contra o comissariado de polícia, em janeiro.
Corri para a rua. Havia cadáveres por toda parte, pedaços de corpos, pernas e braços. Ele parou de falar, constrangido por admitir perante um estrangeiro que havia violência na Argélia, sim.
O mesmo silêncio constrangido seguiu-se à admissão de uma amiga, cuja vizinha havia morrido na mesma explosão e que, no enterro dela, ouvira que um braço de bebê havia sido encontrado num andar superior de um escritório.
Sentados, dois jovens com longos cabelos em estilo hippie. A família de um deles tinha uma gráfica. Ele explicou que estava tirando um dia de folga no Club des Pins. Ouvi as mesmas críticas à velha ditadura da FLN, à impossibilidade de conversar com fundamentalistas, a mesma sugestão de que os problemas eram retratados com muito exagero no exterior. Perguntamos se ele já testemunhara alguma violência.
Houve outro silêncio prolongado. Sim. Onde? Numa estrada. O que acontecera? Sua relutância se desfez. Eu estava de carro, indo para a cidade, na rodovia para Argel, era um dia normal. Havia um cadáver do lado da estrada, deitado numa poça de sangue, um rapaz de uns 24 anos. Não sei porque aconteceu, nem quem era ele. Nunca descobri.

Tradução de Clara Allain

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