São Paulo, segunda-feira, 6 de março de 1995 |
Texto Anterior |
Próximo Texto |
Índice
Depois do naufrágio
CARLOS HEITOR CONY RIO DE JANEIRO — Desde os fenícios prevalece a tradição machista que as feministas, mesmo as mais radicais, ainda não pensaram em abolir: em caso de naufrágio, as mulheres devem ser as primeiras a se salvarem. Por algum motivo que não compreendo, as crianças passaram a ser incluídas na prioridade.Mais cedo ou mais tarde, todos nós, indivíduos, nações ou civilizações, daremos com os burros na água, naufragaremos. Com perdão do pleonasmo, esse será o verdadeiro momento da verdade. A tradição machista prevaleceu dos fenícios até a queda do Muro de Berlim. Como se sabe, com a queda do muro tudo fica permitido. O socialismo naufragou, a igualdade entre os homens é uma balela explorada por imbecis para deleite de ignorantes. A sociedade ideal é a dos fortes, dos vencedores. Quem não tiver em mãos uma estatueta do Oscar dada pela Academia de Ciências e Artes Neoliberais não merece viver. Se insistir em continuar vivendo, então que aceite as leis do mercado e vá limpar privadas em Miami ou lavar pratos em Los Angeles. Uma terceira via é empurrar carros alegóricos enguiçados no Sambódromo do Rio. Além de viver, o cidadão goza a vantagem suplementar de ser famoso, aparecendo 15 segundos na TV. Nos últimos anos, costumo fazer cruzeiros pelo Mediterrâneo e, quando há tempo, prefiro voltar de navio para casa. É uma delícia saltar na praça Mauá, sem problemas com o excesso de peso na bagagem, com noites bem-dormidas, os livros de estimação lidos ou relidos na gostosa pasmaceira dos 15 dias de viagem. Mesmo somando intempestivas idas a Niterói, a milhagem ainda é insuficiente para me considerar um lobo-do-mar. Mas já aprendi o suficiente. Em caso de curtir um naufrágio, nada de dar prioridade às mulheres e crianças. Aderindo à modernidade dos neoliberais, tentarei ser o primeiro a me escafeder. Pisarei no pescoço de velhas e esmagarei o peito de criancinhas. Já que o Muro de Berlim caiu, depois de mim que venha o dilúvio. Quer dizer, o naufrágio. Texto Anterior: Que fede, fede Próximo Texto: Um círculo de ferro? Índice |
Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress. |