São Paulo, sexta-feira, 10 de março de 1995
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Zacharias deseja ser espelho dos mestres

LUÍS ANTÔNIO GIRON
DA REPORTAGEM LOCAL

Sinceridade e reserva é o binômio que rege a carreira do pianista alemão Christian Zacharias, 44. Reconhecido como um dos maiores astros eruditos da atualidade, ele se apresenta no dia 8 de junho, às 21h, no Teatro Municipal de São Paulo. Integra a programação da temporada internacional do Mozarteum Brasileiro.
Zacharias falou anteontem com exclusividade à Folha, por telefone, de Colônia, onde mora com a família, sobre sua primeira turnê sul-americana, o programa do recital e o estilo de interpretação que mais lhe agrada.
"A sinceridade deve superar o exibicionismo", diz. Frase procedente para um artista que atuou com extrema discrição ao longo de 25 anos de trajetória internacional.
Zacharias teve formação básica no Romantismo. Iniciou o piano em Paris, na década de 50. Sua técnica se deve a dois professores: Irene Slavin e Vlado Parlemuter, cultores do não-ostentação.
O estilo, jura, forjou na própria subjetividade, refletindo sobre o papel do artista na sociedade contemporânea, cada vez mais massificada e mediada pela tecnologia.
Gosta de manter uma abordagem individualista. Evita, no entanto, o virtuosismo e a traição dos mestres. "O pianista deve ser um espelho dos compositores", define.
Isso não o impediu de se mostrar em importantes concursos internacionais, como o de Genebra, que venceu em 1969, a Cliburn Competition, na qual obteve o primeiro prêmio em 1973, e o Concurso Ravel, de Paris, que venceu dois anos depois.
Apresentou-se com os principais maestros, de Celibidache a Jochum, em turnês internacionais. Além de solista, pratica música de câmara. Costuma dividir a cena com os quartetos Guarnieri e Alban Berg.
Grava há 19 anos para a EMI. Na sua discografia constam 30 títulos. Especialista em repertório romântico, tem no conterrâneo Robert Schumann (1810-1856) um modelo estético. Curiosamente, um antípoda. Schumann se notabilizou pelo irracionalismo e o desespero, que o levou à loucura. Zacharias persegue a lucidez e a leitura racionalista.
Desde o final da última década, Zacharias se dedica a apresentar programas de rádio e TV na Alemanha. Vê na mídia eletrônica um caminho para a divulgação da música de alto repertório.

Folha - Você é do tipo que tem expectativas em relação à recepção o público?
Christian Zacharias - Não. Em minha longa carreira internacional, percebi que o público é quase sempre o mesmo. Os japoneses, eu arrisco afirmar, são educados demais. Sei que as platéias do Sul são mais quentes e receptivas. Estou animado com a primeira turnê sul-americana, que começa em Buenos Aires.
Folha - Você é um especialista em Schumann. Por que um artista tão diferente da sua própria personalidade?
Zacharias - Não vejo assim. Schumann tem esse componente lunático que o levou ao mais extremo romantismo. Ele é o grande representante do alto Romantismo.
Soube como ninguém enfrentar os desafios da fusão da música com a literatura. Não só por ter criado diversos personagens sonoros em suas composições pianísticas, como colocado em música os poemas de todos os grandes poetas românticos alemães.
Schumann consegue espelhar em suas composições diversas personalidades e possibilidades de arte. Isso é muito próximo do que eu tento fazer.
Folha - Você se define como pianista romântico?
Zacharias - Não somente. Claro, meu campo principal é o Romantismo, toco Liszt e Chopin. Mas me aventuro por Scarlatti, Beethoven, Ravel, Debussy e Mozart. Já gravei as sonatas de Mozart e os concertos de Beethoven.
Para mim, a sinceridade deve superar o exibicionismo puro e simples.
Folha - Você deve o estilo a seus professores?
Zacharias - Veja bem. Estudei com dois mestres: Slavin e Parlemuter. Eles me influenciaram mais na técnica do que no estilo. Este eu desenvolvi seguindo minha subjetividade.
Meus dois mestres integram a família de Clara Haskil (pianista belga), cuja meta é explorar uma obra com a máxima simplicidade e sinceridade. Não vejo por que um pianista deva enfeitar a partitura só para se exibir.
Folha - Você bate na tecla da sinceridade. É possível ser sincero e fazer sucesso?
Zacharias - A tendência atual tem mostrado o contrário. Mas esse é o sucesso fácil e repentino. De nada adianta ingressar no circo sem ter competência. Não adianta tocar a integral das sonatas de Mozart sem tê-las estudado por pelo menos seis anos. O jovem intérprete deve se dar tempo.
Há as exceções, como Clara Schumann, mulher de Robert. Quando ele a conheceu, Clara já era uma concertista famosa e de grande talento.
Folha - Você gosta de gravar discos?
Zacharias - Gosto muito porque no estúdio de gravação o músico pode explorar todas as possibilidades da partitura e enfrentar um desafio estético bem diferente do que um recital ao vivo. Se você entrasse num estúdio e me visse tocar, iria achar uma chatice. É mais investigação do que exibição. Ao vivo acontece o contato com o público, sempre estimulante.
Folha - Você aprova a veiculação dos eruditos por rádio e TV?
Zacharias - Considero a melhor maneira de levar um tema complexo para o grande público. Resolvi apresentar programas porque acho que é necessário encontrar um meio de juntar o alto nível do objeto apresentado e o entendimento por parte da massa.
Dediquei, por exemplo, um programa inteiro de TV para demonstrar a influência da música espanhola na obra para cravo de Domenico Scarlatti. Foi um sucesso, apesar do conteúdo musicológico.
A televisão costuma mostrar a música de forma desinteressante. Ora o maestro, ora os violinos. Muito parado. A música erudita precisa ser veiculada na forma do documentário, como os da "National Geographic" ou do canal Discovery. Deve se aproximar da abordagem científica e, ao mesmo tempo, entreter. Se os bichos divertem o público nos documentários, por que não os compositores?

Texto Anterior: Educação despreza a vida elementar
Próximo Texto: Elisa Lucinda volta com 'O Semelhante'
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.