São Paulo, sexta-feira, 10 de março de 1995
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Educação despreza a vida elementar

MARCELO COELHO
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

É boa a idéia do ministro da Educação, de abolir os exames vestibulares. Só que eu desconfio um pouco desse gênero de propostas, que volta e meia aparecem, são debatidas, contestadas, apoiadas e, um belo dia, sem que se saiba porquê, são esquecidas.
Ocorre uma coisa engraçada no Brasil. É depois de empossado, e não durante a campanha eleitoral, que o governo apresenta seus projetos. As idéias sobre a reforma da Previdência, sobre monopólios estatais, sobre vestibular foram pouquíssimo discutidas antes das eleições. Programas e propostas surgem agora, passa-se um tempo enorme debatendo tudo, e o mandato do presidente termina se revelando curto demais.
Seja como for, está mais do que na hora de acabar com o vestibular. Não é segredo que essa instituição só serve para dar dinheiro aos donos de cursinho.
Mas talvez não esteja nisso o maior escândalo. O que me parece mais revoltante, no vestibular, é o sacrifício inútil que se impõe a um contingente enorme de pessoas, que deveriam estar desfrutando dos melhores anos de suas vidas e são obrigadas a acumular uma quantidade de informações totalmente absurda.
Aquilo que realmente conta na formação de uma pessoa, aquilo que, na medida do possível, é capaz de tornar alguém mais inteligente, capaz de pensar com a própria cabeça, capaz de entender um pouco melhor o mundo, capaz, enfim, de andar com duas pernas em vez de quatro, nada disso se ensina num cursinho.
Não se pensa em Educação; trata-se de amestrar o pobre coitado.
Estas considerações são meio óbvias. O caso do vestibular é óbvio mesmo. Mas eu gostaria de ir mais além, e falar de todo o sistema educacional. O vestibular é apenas a ponta de um iceberg de burrice e tecnocracia que estraga a cabeça das pessoas desde a primeira série do primeiro grau.
Não vou nem falar do ensino público, que é a tragédia, o escândalo que se conhecem. Enquanto uma professora continuar ganhando um salário de fome, todas as considerações a respeito do vestibular tendem a ser um pouco supérfluas.
Mas imagine-se uma outra situação, onde as escolas do Estado atingissem o "padrão de excelência" das escolas particulares. Mesmo que isso acontecesse, seria uma vergonha.
Fico sinceramente indignado quando penso na perda de tempo, na estupidez, no trabalho forçado a que me submeteram durante minha vida escolar. Programas, currículos, leituras, tudo estava errado.
É como se a escola fosse uma instituição voltada apenas para ocupar o aluno com inutilidades de todo gênero, pontuadas aqui e ali com iluminações felizes, professores geniais —aqueles a quem sempre somos gratos—, mas essas iluminações e professores são obras do acaso, enquanto a rotina é insuportável.
Faço algumas recordações, que não têm nada de pessoal, já que estou certo que todo mundo passou por coisa semelhante.
Na terceira série do primeiro grau —eu tinha nove anos—, um dos pontos de geografia era o sistema rodoviário paulista. Que cidades estão ligadas pela Dutra? E pela Raposo Tavares? E pela Castelo Branco?
Informações úteis, sem dúvida. Se eu tivesse carteira de motorista. O resultado é que até hoje não sei se Presidente Prudente está mais longe ou mais perto do que Bebedouro. De todo modo, se eu tivesse de ir sempre a essas cidades, acabaria sabendo.
Os anos se passaram. Aos 13, deram-me para ler (ou melhor, mandaram que eu lesse) uma obra de José de Alencar: "O Ermitão da Glória". Até hoje não entendo. Por que "O Ermitão da Glória"? Se fosse "O Guarani" ou "Iracema", bem, faz parte da vida brasileira. Mas foi "O Ermitão da Glória".
Ainda estamos no agradável e afinal pouco exigente universo das ciências humanas. Cito agora uma experiência terrível: matrizes.
Eu tinha 15 ou 16 anos. Meu professor de matemática, que era um sujeito simpático e nada autoritário, chegou com a novidade. Pôs na lousa um quadrado de números, e disse que aquilo era uma matriz. E que nossa tarefa seria a de encontrar o determinante da matriz. Contas e mais contas.
Até hoje não sei para que serve uma matriz. Muito menos para que serve o determinante da dita cuja.
E penso na quantidade de matérias realmente úteis que poderiam ter ensinado na escola. Dou alguns exemplos.
Consertos domésticos. Em vez de ficar aprendendo matrizes, hoje eu saberia consertar um aspirador.
Cozinhar. O homem moderno precisa ter noções de culinária.
Educação sexual. Não é a teórica, cercada de eufemismos e de coisas que a criança não entende.
Dança. Expressão corporal. Medicina prática. Primeiros socorros. Música —não a prática das flautinhas, mas aulas a respeito de como ter uma audição inteligente. Defesa pessoal. Tiro. Expressão oral e escrita —não as estúpidas aulas de redação, mas algo sobre a técnica de falar e escrever.
No fundo, seria melhor que nos ensinassem a sério, com paciência e método, as coisas elementares da vida: ver, ouvir, falar, pensar, fazer sexo, ler, discutir, amar.
Essa seria a escola dos meus sonhos. Tudo o que a gente aprende de fato, a gente aprende fora da escola. Claro, a escola nos ensina algo sobre disciplina, algo sobre raciocínio lógico (a demonstração de teoremas é a parte mais linda da matemática), algo de português, bastante de história.
Mas que enorme perda de tempo! A perda de tempo adquire sua forma mais excruciante, mais absurda, no vestibular. Mas, se quiserem abolir o vestibular, pensem um pouco, por favor, em todo o resto. Ajudaria a tornar as crianças mais adultas, os adolescentes mais felizes, as pessoas mais inteligentes. Mas é como ninguém se interessasse por isso.

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