São Paulo, sábado, 11 de março de 1995
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Você decide entre Joana santa e cangaceira

ANTONIO CALLADO
COLUNISTA DA FOLHA

Vejo na coluna da Danuza que a Royal Shakespeare Company vem ao Brasil e aqui representará o "Henrique 6º" de Shakespeare, e me pergunto qual a razão para a escolha dessa obscura peça histórica, que, para começo de conversa, são três peças. A idéia, provavelmente, é de representar não um amálgama das três e sim a primeira, apenas.
Nessa primeira parte da saga do rei Henrique o então principiante autor (a peça é de 1592, quando o florescimento de Shakespeare ocorre no início do século 17) teve diante de si um problema. Ou "sentiu" o problema que, como gênio de infinita durabilidade que seria, o aguardava, de tocaia, no futuro: o de retratar na peça uma bruxa chamada Joana D'Arc.
O natural, para um ambicioso dramaturgo inglês escrevendo sobre uma francesa queimada em 1431 por haver derrotado ingleses durante a Guerra dos Cem Anos, era pichá-la. Muitos leitores poderão achar, como achou Anthony Burgess ao analisar o "Henrique 6º parte 1" em sua biografia "Shakespeare", que o bardo simplesmente sentiu, na trama histórica da peça, uma forma de começar a ganhar dinheiro com o teatro.
A França católica era um alvo excelente, "especialmente com uma feiticeira como Joana a queimar. Will Shakespeare estava aprendendo o valor de bilheteria do sexo e do sadismo". Acho tosco, o palpite do nosso Burgess.
Se hoje em dia, ao ocuparem o Haiti, os Estados Unidos depararem de repente com uma jovem e perigosa macumbeira e milagreira, chamarão logo um antropólogo, um pastor protestante e um padre católico. (Só queimarão, discretamente, a macumbeira em último caso).
Mas no tempo da Guerra dos Cem Anos a Inglaterra e a França eram dois países de civilização igual, pedras fundamentais sobre as quais se ergueria o que conhecemos como o mundo moderno. O fato de aparecer, exortando e lutando com armas entre os franceses, uma camponesa de 18 anos, que invocava Deus e os santos do céu antes de brandir o chanfalho, toda vestida de guerreiro, era, na melhor das hipóteses, um desagradável mistério. Um mistério, terá achado Will, que apenas o julgamento, aliás de cartas marcadas, de uma Inquisição sem caráter, não alterava em nada.
Para cúmulo dos cúmulos, em se tratando de ingleses e portanto ancestrais de G.K. Chesterton e P.G. Wodehouse, o demônio da Joana era dotado de extraordinário "humour". Quando Ricardo, duque de York, consegue em duelo dominar Joana, ele insulta a "donzela de França" como mero demônio e lhe diz não temer que, como Circe, ela mude a forma dele.
E Joana, já desarmada e sorrindo: "Encontrar forma pior que a sua eu não conseguiria". Quando um padre-juiz lhe pergunta se os anjos que ela vê ao seu redor lhe aparecem nus, Joana sorri de novo e se finge escandalizada: "Será que o bom Deus não tem recursos sequer para vestir seus servos?"
Se a própria Igreja Católica, Apostólica, Romana hesitou, através dos séculos, em declarar Joana santa (a canonização só saiu em 1920), imaginem o moço Will tendo que botar em cena esta inimiga tão cheia de graças. Pensou, pensou, e, em lugar de uma bruxa, pôs em cena uma esquizofrênica, a primeira da história, a padroeira dos "esquizos", como dizem os moços.
Em lugar de uma, Shakespeare tratou de criar duas Joanas —a que aparece na peça do lado dos franceses, estimulando o rei fraco até levá-lo à vitória e à coroação em Reims, e a que aparece em luta e entre os ingleses. A primeira é respeitada, adorada, aceita como donzela e santa. A segunda, a que afinal é presa e levada a julgamento e fogo pelo inimigo, é uma feiticeira desavergonhada, uma desbocada paraíba vestida de soldado e praguejando no meio da tropa.
O espectador, sem discutir, aceita as duas. Além de criar a primeira esquizofrênica, Shakespeare criou o primeiro "Você Decide", entre Joana a francesa e aquela outra Joana, que ele faz meio Maria Bonita.
Acrescentemos à glória futura do bardo esta sua façanha, que, mesmo assim, não transforma "Henrique 6º" em peça viajeira, boa para qualquer público. Eu confesso que preferiria vê-la adaptada por Zé Celso Martinez ou Gerald Thomas, com, quem sabe, um duelo travado diretamente entre as duas Joanas.

O castrado que não era
A propósito do artigo que nesta coluna publiquei sobre o filme "Farinelli" e os cantores "castrati" (Folha de 11 de fevereiro), recebi do neurologista e melômano Sergio Carneiro uma carta amável e uma fita extraordinariamente preciosa. Nela se gravou a voz do cantor cearense Paulo Abel do Nascimento, que, mais do que contratenor, cantava num registro de "castrato". "E eu nasci assim", dizia Paulo Abel.
Sua voz, entre as de mais de 300 candidatos, foi a escolhida para cantar "Ombra Mai Fu", do "Xerxes", de Haendel, numa cena de sarau do conde de Valmont, em "Ligações Perigosas", de Stephen Frears. Paulo Abel morreu poucos meses atrás, de Aids, e, Carneiro me informa, deixou ainda um disco em que gravou Villa-Lobos e Ovalle e outro com cantatas e sonatas de Alessandro e Scarlatti. A fita que ganhei me trouxe uma voz linda, estranha. Paulo Abel merece as atenções de alguma grande gravadora brasileira.

Parque Guinle enjaulado
O Parque Guinle aqui do Rio é provavelmente a residência mais luxuosa e palaciana que já se construiu no Brasil inteiro. O inspirado milionário Eduardo Guinle começou a construí-lo, com seu ar de palácio babilônico e castelo francês, em 1910, e, para completar seu "luxe, calme et volupté", prolongou-o por um lindo jardim inclinado, guardado por estátuas de esfinges. Hoje, ao redor do palácio que hospedará FHC quando vier ao Rio, há elegantes prédios de apartamentos.
O jardim de Eduardo Guinle é desses apartamentos —e do povo, pois os portões vivem abertos de par em par. O plano de gradear, enjaular o parque de Eduardo Guinle é um horror. O próprio presidente, futuro hóspede do palácio, devia tomar conhecimento desse mesquinho plano municipal. Dê-se policiamento ao Parque Guinle. Mas não coloquemos atrás de grades o povo que o frequenta.

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