São Paulo, domingo, 12 de março de 1995
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À beira de um ataque de nervos

MARCELO LEITE

À beira de um ataque de nervos
Para o que prometia ser uma era sem sobressaltos na economia, a semana foi de arrebentar os nervos. O leitor ainda deve estar tonto com a saraivada de manchetes alarmantes disparada depois de segunda-feira: desvalorização cambial, inflação, fuga de capitais. Dólar, o maldito dólar. Crise.
Assim como a bancarrota mexicana, a introdução das barulhentas bandas cambiais brasileiras pegou todo mundo, inclusive jornais, desprevenidos. Nenhum deles pode agora vangloriar-se de ter "antecipado" nada. O governo conseguiu preparar uma cirurgia de grande porte no Plano Real sem que nada vazasse para os jornalistas.
Para jornalistas. Isto porque há quem acredite que houve, sim, vazamento, mas para operadores do mercado de capitais. A bomba foi deixada pelo deputado federal Delfim Netto (PPR-SP) no "Correio Braziliense" de quarta-feira:
"As mesmas pessoas de sempre souberam antes. É um absurdo. O presidente Fernando Henrique Cardoso é um homem sério. Não devia permitir isso".
No tom jocoso-condescendente que lhe é peculiar, o ex-czar da economia dos governos militares não apresentou comprovação alguma (mas deve entender do que fala). Armou a bomba-relógio e viajou para a Europa. O governo mandou dizer que espera as provas. A imprensa não conseguiu avançar com a história, nem para comprová-la, nem para desmenti-la.
Ou seja, restou para o público a chamada história malcontada. A Folha, por exemplo, publicou duas matérias acanhadas, quinta e sexta-feira, com uma coluna cada. Títulos: "Câmara ouvirá Delfim sobre denúncias de vazamento" (17,5 cm de texto) e "Congresso vai convocar Arida" (11 cm).
"O jornal está apurando esse assunto, mas não pode publicar acusações sem provas. Outros jornais não tiveram esse cuidado", afirma Eleonora de Lucena, secretária de Redação da Folha responsável pela área de Edição.
Atitude louvável, a do jornal. Em princípio. Porque na prática seu leitor ficou sem informação —a não ser por algumas migalhas cifradas em colunas de opinião.

Didatismo
Em matéria de reportagem, o melhor relato que li sobre algo que mereça o nome de vazamento foi a manchete da "Gazeta Mercantil" de sexta-feira. De autoria de Celso Pinto, o texto tinha por título "Agrava-se a especulação contra o BC".
Ao inventariar os fatores que desencadearam a especulação frenética dos últimos dias, o texto narrava a incompreensível decisão de um funcionário do Banco Central de usar o telefone para passar informações cruciais a alguns bancos, apenas. Para tanto, teria deixado de lado o sistema de comunicação eletrônica que alcança todos os operadores. Ainda estou curioso para saber por quê.
A "Gazeta" não é propriamente um jornal didático. Dirigido a um público especializado, não precisa gastar linhas preciosas para explicar, por exemplo, o que são "dealers". Além disso, publica tradicionalmente textos bem mais extensos do que os diários que não são dirigidos ao público financeiro.
No caso da Folha, uns poucos textos se tornaram compreensíveis porque aliavam a maior extensão, incontornável quando se trata de abordar a complexa roleta das mesas de câmbio, com uma disposição jacobina para o didatismo. Cito os dois exemplos mais recentes: a coluna Luís Nassif de sexta-feira ("Os próximos passos do câmbio") e o texto vizinho, "Crise no câmbio ameaça Real e governo de FHC", assinado por Carlos Alberto Sardenberg.

Inflação
Títulos diretos como este último, aliás, incomodam muitos leitores. É coisa típica da Folha. Alguns deles ligaram ao ombudsman para reclamar da manchete de terça-feira, "Governo desvaloriza o real e inflação deve subir neste mês". Tal previsão foi considerada alarmista, até mesmo antipatriótica.
Ponderei que notícias e análises jornalísticas não são patrióticas nem antipatrióticas. Podem ser relevantes ou irrelevantes, corretas ou não, úteis ou supérfluas. Se correta, não parece haver dúvida de que a manchete citada é extremamente relevante e útil para qualquer pessoa preocupada com os rumos da economia brasileira.
A previsão da manchete, segundo Eleonora de Lucena, baseou-se no "impacto inevitável que o aumento do dólar teria sobre os impostos. O Plano Real dependia da entrada de importações. A abertura da economia foi importante para conter preços. No momento em que o governo muda isso, me parece inevitável que vá acontecer (uma alta)".
Para a secretária de Redação, o próprio ministro acabou admitindo isso. Com efeito, depois de negar seguidamente o aumento, na quarta-feira o ministro já falava em inflação mais alta em março. Atribuía o recrudescimento, porém, a fatores sazonais, como mensalidades escolares.
Não estou inteiramente convencido de que não tenha ocorrido alguma precipitação da Folha, com o título da terça-feira. Não concordo, por outro lado, com a idéia de culpar o jornal por turbulências cujo foco real é econômico, não jornalístico. O mercado de câmbio pegou fogo sozinho, na segunda-feira, sem que uma única linha tivesse sido publicada.
Neste caso, parece-me lícito recorrer a uma idéia surrada: o termômetro não pode ser responsabilizado pela febre. A falha dos jornais, nessa semana incandescente, não foi informar demais, mas informar pouco.

Do contra e a favor
Se a Folha é para muitos o jornal do contra, "O Estado de S.Paulo" vai se afirmando como porta-voz do a favor. No mesmo dia em que aquela punha um graveto na fogueira, seu concorrente produzia uma manchete rósea para Fernando Henrique Cardoso: "Governo ajusta o Real, incentiva exportações e corta gasto público".
Na edição de quarta, quando todos os grandes jornais destacavam a disparada do dólar, o "Estado" pedia calma: "BC opera no mercado e segura dólar". No dia seguinte, o assunto desapareceu da manchete, cedendo espaço para outro ato de boa vontade: "Tesouro deixa de sustentar a Previdência". Anteontem, o vacilante Banco Central era transformado em santo guerreiro contra o dragão da maldade: "BC trava 'duelo' com especuladores".
Para comparação, eis os títulos de capa da Folha, nos mesmos dias: "Governo desvaloriza o real e inflação deve subir neste mês"; "Dólar dispara e atinge R$ 0,90"; "Real 2 acelera fuga de capitais"; "Megaoperação tenta recuperar real".
Quando assentar a poeira, que o leitor julgue quem esteve do seu lado, do lado do país ou do lado do governo.

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