São Paulo, domingo, 12 de março de 1995
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O Carnaval dos neolíticos

ROBERTO CAMPOS

"O liberalismo é completamente distinto do anarquismo, pois reconhece que, para que todos possam ser tão livres quanto possível, a coerção não pode ser totalmente eliminada, mas sim reduzida ao mínimo necessário para impedir que indivíduos ou grupos exerçam coerção arbitrária sobre outrem."
(Friedrich A. Hayek)
A crise financeira mexicana deixou as esquerdas irremediáveis brasileiras, com todo o seu séquito de nacional-populismo, mais excitadas do que travestis em sábado de Carnaval. O corporativismo das estatais e adjacências não está disposto a perder essa oportunidade de pôr na rua seu bloco de subintelectuais para sair rebolando. O único problema é como denominar o bloco carnavalesco antiliberal. Seria ele o bloco "neodirigista", "neo-socialista", "neo-estatista", "saudosista" ou simplesmente "bloco neolítico"?
Mal começaram a surgir notícias sobre a segunda crise do México —a primeira crise ocorreu em 1982 e foi ainda mais séria, pois atingiu todo o Terceiro Mundo— e nossas viúvas do socialismo soltaram-se a tagarelar impudicamente sobre a morte anunciada do "neoliberalismo". Três ponderações me ocorreram: a) se os mexicanos fogem em massa para os Estados Unidos é porque estão à busca de um modelo liberal e não da inadequada contrafação que experimentaram; b) o México parece ter uma propensão falimentar congênita, pois faliu em 1982, muito antes do surto neoliberal, esbanjando recursos advindos da alta do petróleo; c) ao contrário da crise do socialismo, que foi sistêmica, levando ao colapso geral das economias planificadas, os atuais solavancos do sistema financeiro internacional são de natureza tópica e não põem em jogo as premissas fundamentais da economia de mercado.
"Neoliberalismo" é uma dessas palavras que pegaram por conveniência, mas que não possui nenhum conteúdo preciso. Vale sobretudo como guarda-chuva para cobrir o movimento, que se generalizou nos anos 80, de um retorno cada vez maior à economia de mercado, em contraposição aos excessos mal sucedidos da excessiva interferência do Estado e à planificação totalitária socialista. Esta acabou desaparecendo na derrocada total da segunda metade dessa década e do começo da atual. O liberalismo não é uma coleção de axiomas e sim um comportamento cultural que privilegia a liberdade individual, respeita as forças do mercado, quer o governo limitado e afirma a responsabilidade individual. A palavra "neoliberalismo" pegou porque é fácil de usar, parece intuitiva —porque lembra o "velho" liberalismo econômico anterior à Primeira Guerra Mundial. E até pensadores sérios, como R. Dahrendorf, valeram-se dela, à falta de outra melhor.
Vamos desfazer a bobajada. Para início de conversa, o México absolutamente não era uma economia "neoliberal". Manteve seus monopólios estatais de petróleo e de eletricidade que, se privatizados, teriam eliminado a dívida interna e evitado a necessidade de recorrer a capitais especulativos para sua rolagem. E manteve um grau muito considerável de intervenção na economia, principalmente no câmbio, queimando reservas para sustentar uma taxa sobrevalorizada, contrariando as forças de mercado e provocando um déficit exagerado em conta corrente. Na crise anterior, de 1982, o governo fizera uma aposta imprudente sobre a contínua ascensão dos preços do petróleo e gastou por conta de recursos futuros. Em ambos os casos, o problema estava na dose. Foi dose para cavalo (sem trocadilho com o ministro de Finanças argentino...). Na crise de 1982, a piada era que o presidente Echeverria tinha ganho o Prêmio Nobel de Química, pois "lograra convertir la moneda en mierda...". Infelizmente, a propensão falimentar não é a especialidade mexicana, e sim uma contagiosa doença latino-americana. O Brasil já proclamou moratórias, quer na era imperial, quer na era republicana, tanto sob regimes autoritários como sob regimes democráticos. Nessa última moratória, declarada assaz raivosamente, foi em 1987, sob um regime nacional populista, muito antes da onda neoliberal que se espraiou pela América Latina a partir de 1990, em seguida ao fracasso dos modelos estatizantes e filosocialistas.
Nenhuma economia aguenta indefinidamente gastar muito mais do que entra. Nesse ponto, as coisas não são muito diferentes do que aquilo que se passa com as finanças de qualquer família. Pode-se, aliás, criticar o fenômeno de "onda" dos investidores privados no mercado. No caso mexicano, é surpreendente que os investidores não se tenham dado conta dos riscos cumulativos, imprevidência facilitada pelo hábito desse país de informar mal e com atrasos os números reais da situação econômica. Por várias razões, havia nos Estados Unidos um intenso desejo político de incluir o México num grande bloco econômico, completando o que já ocorria com o Canadá. E os americanos, quando se entusiasmam, não costumam ser dos mais prudentes...
Por outro lado, todo e qualquer mercado está sempre sujeito a ondas especulativas. É uma característica que se reflete em fenômenos de aceleração, e decorre do fato de que os agentes econômicos nunca têm informação instantânea perfeita sobre o que os outros estão fazendo. Um compra ou vende, outro vai atrás para não perder a oportunidade, e assim por diante, até que começa a ficar claro que a situação mudou. Isso é normal e não constitui nenhum "defeito" do mercado a ser "corrigido" pelo governo por meio do planejamento central, como pensavam os falecidos socialistas. É evidente, porém, que tudo tem medida, e que excessos especulativos podem produzir efeitos não desejados.
Fenômenos da espécie são reconhecidos na economia de mercado, e há duas soluções razoáveis, que se complementam reciprocamente. Primeiro, é preciso que os mercados funcionem realmente de forma livre e competitiva, com total e irrestrita circulação de informações, sem obstáculos artificiais criados pelos governos ou por grupos oligopolísticos privados. Mercados semilivres, como as semivirgens, não são confiáveis. Segundo, é preciso que as autoridades monetárias e financeiras, em especial os Bancos Centrais, mantenham entre si um suficiente grau de cooperação (como a que permitiu, em outubro de 1987, conter os efeitos da quebradeira das Bolsas). E a razão é muito simples. Os mercados financeiros abrangem hoje praticamente todo o mundo, ao passo que as jurisdições das autoridades competentes são uma colcha de retalhos de soberanias nacionais. Uma adequada medida de cooperação ajuda o fluxo de informações e aumenta a previsibilidade do sistema —o que contribui para limitar possíveis reações excessivas dos agentes econômicos.
Liberalismo não quer dizer anarquia nem ausência de regras de jogo. O pensamento econômico de linha liberal, que voltou a predominar em todo o mundo civilizado, não propõe a abolição das regras. Apenas recomenda o mínimo de interferência com os mecanismos automáticos de ajuste que operam no mercado, ao invés da intervenção quase sempre inepta e arbitrária, e frequentemente corrupta, das burocracias governamentais.

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