São Paulo, domingo, 12 de março de 1995
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O longo caminho para reinventar o governo

PETER DRUCKER

A promessa feita pelo vice-presidente Al Gore de "reinventar o governo", anunciada com grande fanfarra no primeiro ano da administração Clinton, foi recebida com um grande bocejo nacional. Desde então não tem faltado publicidade para a iniciativa. De todos os programas nacionais da administração Clinton, este é um dos poucos que vem rendendo resultados de fato, e não apenas discursos. No entanto, nem o público nem a imprensa têm demonstrado grande interesse pelo assunto.
Eis alguns exemplos, infelizmente bastante típicos:
Em Atlanta, Geórgia, seis programas diferentes de bem-estar social (previdenciários) juntaram seu processo de aplicação para fornecer "atendimento imediato".
A agência do U.S. Geological Survey (Instituto Norte-Americano de Pesquisas Geológicas), em Denver, deveria vender mapas dos EUA ao público. Mas é quase impossível descobrir que mapas pedir e onde e como encomendá-los, já que o catálogo é mantido cuidadosamente escondido. E o próprio fato de o mapa estar em demanda pelo público praticamente garante que será impossível obtê-lo. Para o futuro, porém, coisas mais ambiciosas estão sendo prometidas:
O Departamento de Agricultura se propõe a reduzir seus órgãos de 42 para 30, fechar mais de 1.000 "escritórios de campo" e eliminar 11 mil empregos, para poupar cerca de US$ 3,6 bilhões num prazo de cinco anos.
Das 384 recomendações sobre meios de reinventar o governo identificadas pelo vice-presidente em 1993, cerca de metade estão sendo propostas no orçamento do ano fiscal de 1995. Se todas essas recomendações forem aceitas pelo Congresso, devem resultar numa economia de cerca de US$ 12,5 bilhões num prazo de dois anos.
Mesmo que todas as propostas fossem transformadas em lei, os resultados seriam triviais. A proposta de economia que seria feita pelo Departamento de Agricultura, de US$ 3,6 bilhões em cinco anos, equivale a cerca de US$ 720 milhões por ano —ou seja, mais ou menos 1% do orçamento anual do departamento, de quase US$ 70 bilhões. Uma economia de US$ 12,5 bilhões parece muito dinheiro. Mas a cada dois anos o governo federal gasta US$ 3 trilhões. Assim, uma economia anual de US$ 6 bilhões —e isso é muito mais do que o Congresso provavelmente vai aceitar— representaria, portanto, não mais do que um corte de dois décimos de 1% do orçamento. Certamente a única maneira de se descrever o resultado dos esforços de Al Gore até agora é com o velho refrão latino: "As montanhas se convulsionaram em trabalho de parto para dar à luz um ridículo e minúsculo camundongo".
Quando qualquer organização, seja ela biológica ou social, sofre uma mudança significativa de dimensões, ela precisa modificar sua estrutura básica. Qualquer organização que dobra ou triplica de tamanho precisa ser reestruturada. Numa situação de desordem, a primeira reação é sempre fazer o que o vice-presidente Gore e seus assessores estão fazendo agora —remendar. Ela sempre fracassa. O próximo passo é mergulhar correndo no "downsizing" (reduzir as estruturas e o quadro de funcionários). A direção apanha um machado e começa a retalhar tudo em volta dela, indiscriminadamente. Mas houve algumas poucas organizações que realmente operaram a virada, sem grande fanfarra, através do processo de se repensarem.
Prosseguir com atividades que não optaríamos por iniciar agora é um desperdício.
O repensamento não diz respeito primordialmente ao corte de despesas. Ele leva, sobretudo, a uma tremenda elevação do desempenho, da qualidade e do atendimento. Mas economias substanciais de custos —que podem chegar a 40% do total— sempre aparecem como subproduto do processo. De fato, o repensamento poderia produzir economias suficientes para eliminar o déficit federal no prazo de alguns anos. O principal resultado, porém, seria uma mudança na abordagem básica.
Qualquer pessoa que tiver lido até aqui exclamará: "Impossível!" Com certeza nenhum grupo de pessoas conseguirá chegar a um acordo sobre o que deve figurar no alto da lista e o que deve ficar no pé. Mas é espantoso —em todos os lugares e ocasiões em que se procedeu à reinvenção houve uma concordância substancial em relação à lista, fossem quais fossem as idéias e os campos de trabalho das pessoas envolvidas.
As pessoas argumentarão que mesmo que se chegasse a uma opinião unânime por parte de figuras altamente respeitadas, não adiantaria. O Congresso jamais aceitaria algo desse tipo, tampouco a burocracia. Lobistas e grupos que defendem interesses especiais de todos os tipos se uniriam para opor-se a qualquer proposta tão subversiva quanto essa.
Isso é verdade, sem dúvida: implementar a reinvenção hoje é impossível. Mas será que ainda será impossível amanhã?
Se tivermos um plano que mostre como e onde o governo precisa ser repensado, teremos uma chance. Numa crise nós nos voltamos às pessoas que já refletiram de antemão sobre o que precisa ser feito. É claro que nenhum plano, não importa o quão bem pensado possa ser, jamais será posto em prática exatamente como foi escrito. Mesmo um ditador precisa fazer conciliações. Mas um plano desse tipo funcionaria como ideal, contra o qual os meios-termos seriam medidos. Poderia nos poupar de sacrificar coisas que deveriam ser fortalecidas para manter as coisas obsoletas e improdutivas. Não garantiria que todas as coisas improdutivas seriam cortadas —nem mesmo a maior parte delas—, mas poderia garantir a manutenção das coisas produtivas. É provável que enfrentemos uma crise desse tipo dentro de alguns anos, à medida que o orçamento federal e o déficit federal voltarem a crescer em ritmo explosivo, ao mesmo tempo que os contribuintes oponham resistência cada vez maior aos aumentos dos impostos e mostrarem cada vez mais desprezo pelo governo e suas promessas.
É possível, de fato, que já estejamos muito próximos de sermos forçados a reinventar o governo. A teoria com base em qual vêm operando todos os governos do mundo desenvolvido, pelo menos desde a Grande Depressão (Harry Hopkins, assessor de Franklin Delano Roosevelt, a chamava de "Cobrar impostos e impostos, gastar e gastar") já deixou de produzir resultados. Hoje ela sequer produz votos. O "Estado babá" —um ótimo termo cunhado na Inglaterra— é um fracasso total. Os governos por toda parte —nos Estados Unidos, no Reino Unido, na Alemanha, na ex-União Soviética— têm provado ser incapazes de administrar a comunidade e a sociedade. E os eleitores por toda parte se revoltam contra a ineficácia, a burocracia e os ônus do Estado babá. Mas a teoria contrária, que prega um retorno ao tipo de governo pré-Primeira Guerra Mundial, também não se mostrou funcional. Apesar de sua ascendência na década de 80, apesar de Ronald Reagan e Margaret Thatcher, o Estado babá não encolheu. Pelo contrário, está crescendo cada vez mais rapidamente. Como a nova maioria republicana vai descobrir em muito pouco tempo, nem manter nem reduzir o Estado babá representam opções aceitáveis para o público.
Em lugar disso, teremos que descobrir quais os programas e atividades do governo na comunidade e na sociedade que realmente servem a um fim. Quais os resultados que devem ser esperados de cada um deles? O que os governos —federal, estaduais, municipais— efetivamente fazem? E que meios não-governamentais existem para se fazer coisas que valem a pena ser feitas e que os governos não podem fazer e não fazem de modo funcional e eficiente?
Ao mesmo tempo, como descobriu o presidente Clinton nos dois primeiros anos de seu mandato, o governo não pode optar por isolar-se do mundo mais amplo e ocupar-se apenas das questões nacionais, como ele tanto desejava. Os incêndios florestais estrangeiros —na Bósnia, em Ruanda, na ex-União Soviética— precisam ser tratados, pois têm o desagradável hábito de se espalhar. E a crescente ameaça do terrorismo internacional, especialmente quando utilizado como arma por governos fora-da-lei, certamente vai exigir um maior envolvimento do governo nos assuntos externos, incluindo os militares, e mais cooperação internacional.
Já ficou claro que um país desenvolvido não pode nem estender o grande governo, como querem os (chamados) liberais, nem aboli-lo e voltar à inocência do século 19, como querem os (chamados) conservadores. O governo de que precisamos terá que transcender a ambos os grupos. O mega-Estado que este século construiu está falido, moralmente e financeiramente. Ele não cumpriu com o prometido. Precisamos de um governo funcional e eficiente— e é isso que pedem e exigem os eleitores em todos os países desenvolvidos.
Para tanto, porém, precisamos de algo que não temos: uma teoria do que o governo pode fazer. Nenhum grande pensador político tratou esta questão —pelo menos não desde Maquiavel, há quase 500 anos. Todas as teorias políticas tratam do processo de governo: das constituições, do poder e suas limitações, de métodos e organizações. Nenhuma delas trata do conteúdo. Nenhuma pergunta sobre quais poderiam e podem ser as funções corretas do governo. Nenhuma pergunta sobre quais os resultados pelos quais o governo deveria ser responsabilizado.
Repensar o governo, seus programas, seus órgãos, suas atividades, não nos daria por si só esta nova teoria política. Mas nos daria as informações factuais para ela. E há tanta coisa que já está clara: a nova teoria de que tanto precisamos terá que basear-se na análise do que realmente funciona, e não nas boas intenções e nas promessas do que deveria funcionar porque gostaríamos que funcionasse. A reinvenção não nos dará as respostas, mas pode obrigar-nos a formular as perguntas certas.
O momento certo para começar é agora, quando as sondagens mostram que menos de um quinto do público norte-americano confia no governo para fazer qualquer coisa direito. A "reinvenção do governo" do vice-presidente Al Gore é até agora um slogan vazio. Mas o que esse slogan implica é o que o governo livre precisa —e precisa desesperadamente.

Tradução de Clara Allain

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