São Paulo, domingo, 12 de março de 1995
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O líder de uma geração

LORENZO MAMMÍ
ESPECIAL PARA A FOLHA

Virou lugar-comum falar da crise da música contemporânea, como se o esgotamento, a incomunicabilidade, o confinamento em um gueto de especialistas fossem fatos já consumados, sobre os quais nada resta a fazer. Temos memória curta: há crise, é verdade, mas não remonta a mais de 15, 20 anos. A geração anterior, aquela que explodiu depois da Segunda Guerra e se desenvolveu nas décadas de 50 e 60, é uma das mais ricas e criativas de nossa história musical. Boulez, Stockhausen, Berio, Ligeti, Nono, Cage —que era mais velho, mas exerceu sua maior influência nesse período— escreviam música complexa, mas certamente não ficavam num gueto: encontramos influência da obra deles na música popular (o free jazz, o rock de vanguarda), nas artes plásticas, no teatro, na literatura. Era uma arte muito cerebral, sem dúvida, mas não era acadêmica.
Desse grupo, Boulez talvez não seja o melhor compositor (obviamente, é questão de gosto, mas eu diria que o melhor é Stockhausen); é porém o pensador mais lúcido e o teórico mais rigoroso. Além de tudo, é um ótimo regente e um extraordinário organizador. Acabou assumindo naturalmente a função de líder.
A editora Perspectiva lança agora "Apontamentos de Aprendiz", uma antologia de artigos e ensaios que saiu em 1966 na França, e que contém textos escritos entre 1948 e 1962. Mais do que "A Música Hoje", que a Perspectiva já publicou, esse livro ajuda a entender o que realmente se passou na música daquela época. Acompanha 15 anos de evolução passo a passo, com todos os seus exageros e os seus arrependimentos. Como quando Boulez, aos 26 anos, escreve sem mais nem menos que Stravinsky não sabe compor (em "Momento de Johann Sebastian Bach"), para publicar depois, aos 28, uma análise respeitosa (e, aliás, magistral) da estrutura rítmica de "sagração" ("Stravinsky permanece").
Alguns desses textos se tornaram exemplares: "Morreu Schoenberg", por exemplo, de 1952, marca um ponto de virada na estética musical deste século. E qualquer um que pretenda trabalhar com análise musical deve ler obrigatoriamente "Stravinsky permanece" e "Trajetórias".
A escrita de Boulez, sobretudo de Boulez jovem, não é fácil. Percebe-se sua admiração pela sintaxe de Mallarmé, que para ele é um modelo inclusive de composição musical. Mas o pensamento que está por trás do texto é perfeitamente claro. Boulez acreditava que a época das rupturas tinha se esgotado. O dodecafonismo liquidara o sistema tonal e, a partir de Webern e Messiaen, as bases de uma nova ordem sonora estavam postas.
O que restava a fazer era explorar todas as possibilidades da nova organização do espaço sonoro, para reconstruir, aos poucos, uma outra linguagem universal, tão coesa quanto a tonalidade. Seu caráter mais evidente seria a abolição dos eixos vertical (harmonia) e horizontal (melodia), substituídos por constelações de sons, distribuições livres no espaço e no tempo. O que garantiria o êxito do novo sistema seria apenas sua coerência interior, seu rigor, a partir de um conceito de série retomado da escola de Viena, mas levado muito além dela. E o que permitiria sua comunicação com os outros campos da cultura seria uma noção que acabava de ser descoberta, e se difundia de maneira aparentemente irresistível: a noção de estrutura.
Era uma época otimista, que se afastava dos desastres da guerra com honestidade profunda e uma extraordinária capacidade de projeto. É fácil dizer hoje, com um bom-senso retrospectivo, que as línguas são baseadas em convenções em grande parte arbitrárias, que não se constroem em laboratório nem por exercícios lógicos, e que a coerência não é exatamente a qualidade principal delas. Aliás, Lévi-Strauss tentou alertar sobre isso, do alto de sua autoridade de pai do estruturalismo, quando polemizou com a escola de Boulez e dos serialistas na Ouverture de "O Cru e o Cozido".
Mas o fez a partir de uma posição tão conservadora que a polêmica se tornou imediatamente um diálogo entre surdos. E é preciso dizer que Boulez nunca (a não ser talvez nas "Structures" para piano) caiu na armadilha de um esquema globalizante, predeterminado, que decidisse previamente todos os percursos da obra. Sempre se opôs a esse atalho, assim como protestou contra o recurso aleatório sem controle, o puro acaso. O modelo de Boulez sempre foi o golpe de dados de Malarmée, o risco calculado, a jogada em parte arbitrária, que porém comporta uma série de consequências lógicas incontornáveis. A decisão que não elimina o acaso, mas que não é destruída por ele.
Tudo isso, é verdade, deve passar também por um outro tipo de avaliação. Uma poética, ainda que seus argumentos sejam falhos, se justifica se consegue acelerar a evolução formal em andamento, se produz obras mais ricas e mais maduras. "Kreuzpiel" de Stokhausen, a "Sinfonia" de Berio, "Le marteau sans maŒtre" de Boulez (para citar apenas algumas peças: há umas outras duas dúzias desse nível) são composições de uma beleza evidente, que poderia ser negada apenas pela má-fé ou por uma escuta preconceituosa.
Seriam suficientes para considerar essa geração como uma das mais importantes, se não a mais importante deste século, do ponto de vista da composição musical erudita.
No entanto, nos serialistas integrais há uma sobrecarga teórica, um esforço de sistematização que vai muito além daquilo que foi e que podia ser imediatamente aproveitado nas obras. Isso é algo recorrente na história da música. Compor é um trabalho muito indireto e tortuoso: cada inovação significativa obriga a modificar o sistema de notação, as técnicas de execução, às vezes até a construção dos instrumentos. Sentimos as oscilações rítmicas de Chopin, por exemplo, como algo muito instintivo e natural.
Mas para escrevê-las com tanto detalhe, o compositor foi obrigado a revolucionar a notação rítmica, com um esforço paciente que podemos acompanhar nas partituras. Existem autores nos quais os meios técnicos à disposição são levados às últimas consequências, sem ser renovados —é o caso de Mozart, por exemplo. E outros, em que as inovações técnicas e linguísticas vão muito além de sua aplicação imediata. As últimas obras de Bach e os últimos quartetos de Beethoven marcam momentos desse tipo.
É muito raro, porém, que uma geração inteira cumpra um esforço tão rigoroso para ir além de si mesma, para imaginar uma linguagem do futuro mais pura e mais verdadeira do que atual. Talvez haja apenas um outro caso de um esforço desse porte: a evolução rítmica medieval do século 14 conhecida como "Ars Nova".
Não por acaso, Boulez faz referências contínuas a essa escola, que tentou criar uma ciência rítmica inteiramente racional a partir de combinações simples. Os primeiros e mais rigorosos autores da "Ars nova" são pouco executados. Suas composições estão longe de ser ruins, mas são muito difíceis de realizar, e são tão densas quanto um Boulez.
Grande parte, todavia, da música polifônica dos dois séculos que seguiram, até às obras-primas da Renascença, é baseada numa diluição e um desenvolvimento dos recursos que aqueles autores utilizaram de forma ainda embrionária, e como que exprimidos um contra o outro.
Essa comparação não quer ser consolatória. Há, sem dúvida, um desnorteamento crescente na música contemporânea, que os patéticos retornos neotonais e neo-românticos não conseguiram disfarçar. É bem possível que a música erudita ocidental deixe de existir, assim como começou a existir a partir daqueles músicos da "Ars nova". Nesse caso, o enorme patrimônio técnico acumulado pelos compositores da geração de Boulez seria desperdiçado. Ou talvez o reencontremos, como já acontece às vezes, numa trilha de cinema, num acompanhamento de música popular, ou em algum lugar que ainda não conseguimos imaginar.

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