São Paulo, domingo, 12 de março de 1995
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Uma luz diferente sobre o século

MICHEL FOUCAULT

Perguntam-se os senhores o que significou ter percebido, através do acaso e do privilégio de uma amizade encontrada, um pouco do que acontecia na música há quase 30 anos? Eu era naquele momento apenas um transeunte retido pela afeição, por uma certa perturbação, pela curiosidade, pelo estranho sentimento de assistir àquilo de que não conseguia ser um contemporâneo. Era uma sorte: a música era então desertada pelos discursos do exterior.
A pintura, naquele tempo, induzia a falar; pelo menos a estética, a filosofia, a reflexão, o gosto —e a política, se tenho boa memória— julgavam-se no direito de dizer algo sobre ela e a tal se obrigavam como a um dever: Piero della Francesca, Veneza, Cézanne ou Braque. O silêncio, todavia, protegia a música, preservando sua insolência. O que era, sem dúvida, uma das grandes transformações da arte no século 20 permanecia fora do alcance para aquelas formas de reflexão que, ao nosso redor, haviam estabelecido seus quartéis, nos quais corríamos o risco de contrair nossos hábitos.
Assim como naquele tempo, não sou capaz agora de falar sobre a música. Sei apenas que o fato de ter adivinhado —e quase sempre pela meditação de outra pessoa— o que se passava no ambiente de Boulez fez com que me sentisse um estranho no mundo de pensamento em que eu fora formado, ao qual continuava a pertencer e que, para mim como para muitos outros, possuía ainda sua própria evidência. É melhor, talvez, que as coisas sejam assim: se eu tivesse tido ao meu redor os meios de compreender aquela experiência teria encontrado talvez apenas uma ocasião de repatriá-la para onde não seria o seu lugar.
Julga-se, de bom grado, que uma cultura se liga mais a seus valores do que a suas formas; que estas podem facilmente ser modificadas, abandonadas, retomadas; que somente o sentido se enraíza profundamente; significa isto desconhecer quanto espanto provocaram ou quanto ódio suscitaram as formas ao se desfazerem ou ao nascerem; significa desconhecer que se faz mais questão das maneiras de ver, de dizer, de fazer e de pensar do que daquilo que se vê, do que daquilo que se pensa, diz ou faz. O combate das formas, no Ocidente, foi tão encarniçado quanto o das idéias ou dos valores ou até mais. Mas as coisas, no século 20, tomaram uma feição singular: é o próprio "formal", é o trabalho reflexivo sobre o sistema das formas que se tornou o ponto mais importante. E um notável objeto de hostilidades morais, de debates estéticos e de afrontamentos políticos.
Na época em que nos ensinavam os privilégios dos sentidos, do vivido, do carnal, da experiência originária, dos conteúdos subjetivos ou das significações sociais, encontrar Boulez e a música significava ver o século 20 sob um ângulo que não era familiar: o de uma longa batalha ao redor do "formal"; significava reconhecer como na Rússia, na Alemanha, na Áustria, na Europa Central, através da música, da pintura, da arquitetura, da filosofia, da linguística, da mitologia, o trabalho do formal desafiara os velhos problemas e transformara as maneiras de pensar. Haveria toda uma história do formal no século 20 a ser feita: procurar determinar seu poder de transformação, isolá-lo como força de inovação e como espaço do pensamento, para além das imagens do "formalismo", atrás das quais quiseram ocultá-lo. E contar, do mesmo modo, suas difíceis relações com a política. Não devemos esquecer que ele foi logo designado, em países stalinistas e fascistas, como a ideologia inimiga e a arte odiosa. Aquele que foi o grande adversário dos dogmatismos de academias e de partidos. Os combates ao redor do formal foram um dos grandes traços culturais do século 20.
Para chegar a Mallarmé, a Klee, a Char, a Michaux, como mais tarde para chegar a Cummings, Boulez precisava apenas de uma linha reta, sem desvio nem mediação. Frequentemente, um músico se aproxima da pintura, um pintor da poesia, um dramaturgo da música, através de uma figura abrangente e através de uma estética cuja função é a de universalizar: romantismo, expressionismo etc. Boulez ia diretamente de um ponto a outro, de uma experiência a outra, em função do que parecia ser não uma parentela ideal mas a necessidade de uma conjuntura.
A um dado momento de seu trabalho e porque seu itinerário o levara a um certo ponto determinado (e este ponto e este momento permanecem totalmente interiores à música), surgia de repente o acaso de um encontro, o brilho de uma proximidade. É inútil perguntar de que estética comum, de que análoga visão do mundo podiam proceder os dois "Visage nuptial", os dois "Marteau sans maŒtre", o de Char e o de Boulez. Não havia essa estética nem essa visão. A partir da incidência primeira, começava um trabalho de um sobre o outro; a música elaborava o poema que elaborava a música. Trabalho tanto mais preciso justamente e tanto mais dependentes de uma análise meticulosa por não depositar confiança em nenhuma vinculação prévia.
Aquela correlação ao mesmo tempo arriscada e reflexiva era uma singular lição contra as categorias do universal. Não é a subida para um local mais alto, não é o acesso ao mais envolvente ponto de vista que nos traz mais luz. A luz viva vem lateralmente, pelo fato de uma divisória ser atravessada, de um muro ser furado, de serem duas intensidades aproximadas, de uma distância ser transposta num instante. Às grandes linhas indecisas que embaralham os rostos e atenuam os ângulos para isolar o sentido geral, é bom preferir o afrontamento das precisões. Deixemos a quem quiser a idéia de que nada tem fundamento sem um discurso comum e uma teoria de conjunto. Na arte, como no pensamento, o encontro somente se justifica pela nova necessidade que estabeleceu.
A relação de Boulez com a história —quero dizer com a história em sua própria prática— era intensa e batalhadora; para muitos —e eu estava entre eles— ela permaneceu por muito tempo, creio, enigmática. Boulez detestava a atitude que escolhe no passado um modelo fixo e procura fazê-lo variar através da música atual: atitude "classicista", como ele dizia; detestava do mesmo modo o a atitude "arcaizante" que toma a música atual como referência e procura nela enxertar a juventude artificial de elementos passados. Creio que seu objetivo, nessa atenção em relação à história, era o de fazer com que nada permanecesse fixo, nem o presente nem o passado. Desejava-os, a ambos, em perpétuo movimento um em relação ao outro; quando se aproximava o mais possível de uma determinada obra, encontrando seu princípio dinâmico a partir de sua decomposição tão tênue quanto possível, não procurava dela fazer um monumento: procurava atravessá-la, "passar através", desfazê-la num gesto que lhe permitisse fazer mover até o próprio presente. "Rompê-la como a uma tela" gosta ele de dizer agora, pensando, como nos "Paravents", no gosto que destrói através do qual morremos nós mesmos e que permite passar para o outro lado da morte.
Havia algo de desconcertante naquela relação com a história; os valores que ela presumia não indicavam uma polaridade no tempo —progresso ou decadência; eles não definiam lugares sagrados. Marcava pontos de intensidade que eram também objetos "de reflexão". A análise musical era a forma que tornou aquela relação com a história— uma análise que não procurava as regras do uso de uma forma canônica mas sim a descoberta de um princípio de relações múltiplas. Via-se nascer através daquela prática uma relação com a história que negligenciava as formas cumulativas e desprezava as totalidades: sua lei era a dupla transformação simulada do passado e do presente através do movimento que afasta de um e do outro através da elaboração do outro e do um.
Boulez nunca admitiu a idéia de que todo pensamento, na prática da arte, seria excessiva se não fosse a reflexão sobre as regras de uma técnica e sobre seu próprio jogo. Por isso, pouco gostava de Valéry. Quanto ao pensamento, esperava justamente que ele lhe permitisse fazer, sem cessar, coisa diferente do que estava fazendo. Pedia-lhe que abrisse um novo espaço livre no jogo tão regulado, tão reflexivo, que estava jogando. Alguns o acusavam de gratuidade; outros de excesso de teoria. Mas para ele, o essencial era: pensar a prática o mais perto possível de suas necessidades internas sem dobrar-se, como se elas fossem soberanas exigências, diante de nenhuma delas. Qual é então o papel do pensamento naquilo que se faz se ele não deve ser nem simples "avoir-faire" nem pura teoria?
Boulez o mostrava: fornecer a força para romper as regras no próprio ato que as faz funcionar.

Tradução de FULVIA M.L. MORETTO

Este texto foi publicado originalmente na revista "Nouvel Observateur"

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