São Paulo, domingo, 12 de março de 1995
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Uma conversa com Boulez

(continuação)

DÉCIO PIGNATARI

O compositor fala de arte, trabalho e política
Encerrado o período heróico do Domaine Musical, Boulez deu início a uma fulgurante carreira de regente, que o tornou rico e famoso no mundo todo. O leque de suas gravações e regências também apresentava algumas lantejoulas heteronômicas, pois ia de "bolero", de Ravel, à integral de Webern (à exceção da primeira versão da peça formidável que o compositor austríaco dedicou à morte da mãe, que James Levine regeria nos inícios dos anos 80).
Ao mesmo tempo que declarava que Erik Satie havia retardado a música francesa em meio século, tinha de ouvir de alguns críticos, como Roger Smalley ( Enciclopédia Larousse de Música, versão inglesa, 1987), coisas como: "caso alarmante ( ) de espantosa queda de atividade criativa, quando comparada com a enchente de obras brilhantes do início de sua carreira compositiva".
Nós, no Brasil, entrávamos na ditadura quando explodiu o universo informacional e comunicacional, que me levaria ao mundo universitário... e à música do passado (até o início dos anos 70, meu mais remoto passado musical, enquanto referência audível, era Debussy). Perdemos contato, perdemos interesse.
Em meados dos anos 70, enviei-lhe o meu "Exercício Findo" (1968), contendo minhas decifrações poéticas do "Lance de Dados" mallarmaico ("Mallarmé Vietcong"): recebi uma cartinha muito simpática... em inglês!).
Enfim, ele tinha uma vaga idéia de quem eu era. Já dirigia então o IRCAM, o núcleo de pesquisas musicais do Centro Georges Pompidou. E foi ali que o revi, após décadas, há cinco anos. Deixara a a regência, só queria pensar no centro e nos seus projetos criativos próprios. Fizemos quatro passos pela noite recém-vinda, fantasmas melancólicos que um dia se conheceram e já não mais se reconheciam; estava contente —e até orgulhoso— com as homenagens que se preparavam em Baden-Baden (onde várias de suas obras seriam executadas), pela passagem de seu 65º aniversário. Agora, em memória e homenagem de seus setentanos, pela glória que veio e pela que deixou de vir, publico este documento paleográfico, "ci-bas chu", caído aqui em baixo:
"Encontro com Boulez. Après-midi de 9 de abril 1955, sábado, Aleluia"
Uma conversa e fomos almoçar. Falei que ele devia estar um pouco nervoso na hora do discurso, isto é, conferência (que pronunciou num dos concertos Marigny); que o discurso estava um pouco confuso; que ele quis dizer tudo em meia hora, e que eu não tinha entendido, por exemplo, porque a arte não pode ser objetiva; e perguntei o que achava de Fano, pois uma parte do seu discurso me pareceu um resumo do artigo de Fano, no Domaine Musical.
Respondeu que não teve tempo de preparar o discurso, levando apenas algumas notas; que na verdade nem chegou a explicar porque a arte não podia ser inteiramente objetiva; que Fano não é lá grande coisa, que ele Boulez escrevia antes que ele Fano, o qual aprendeu o que sabe com Boulez. Perguntei se ele não se colocava o problema do público. Respondeu que não, nem pensava; que se guiava pelo empirismo; que o seu trabalho era o de criar a obra: o problema do público é a posteriori.
Eu disse: assim fica fácil: é fácil representar o papel de Gênio para quatro ou cinco especialistas aspirantes a Gênio. Replicou: digamos que não coloco o problema a priori, mas como uma questão entre eu e mim. Eu: então a questão do público está colocada de que jeito, e esse debate entre você e você mesmo terá que ter repercussões na obra. Ele disse: eu crio o objeto e procuro pô-lo em circulação do melhor modo: daí os concertos Marigny, por exemplo. Eu disse: mas não há uma contradição entre essa sua atitude e a "mauvaise conscience" a que você se refere no discurso? Ele: eu absolutamente não sinto a menor "mauvaise conscience"! Eu sou um salariado, meu amigo, e portanto um operário.
Eu disse: Mallarmé também era um salariado: quem pagava Mallarmé? O Estado. Mas o dinheiro do Estado de onde vem? Do operário. logo, quem pagava Mallarmé era o operário, e Mallarmé escreveu para os patrões, isto é, para a classe dominante e falou em coisas que tais: os Eleitos, os Sonhos, as Pedras Preciosas, o Livro Eterno, a Linguagem para Iniciados, o Dandismo, o Único. Ele: e Cézanne foi a mesma coisa. Eu: mas Coubert não foi. Ele disse: je n'aime pas Coubert. Eu: mas Demoiselles de la Seine é um quadro muito bom. Ele: mas é justamente um quadro em que Courbet é menos Courbet. Eu: ao contrário: lá está o luxe-calme-et-volupté da burguesia preguiçosa.
Ele: mas Cézanne era o melhor de todos eles. Eu acrescentei: mas falemos de Daumier. Ele: bom. Eu: Einstein e Oppenheimer saem dos seus laboratórios de concreto e fazem apelos. Ele disse: eles podem falar e tem prestígio e podem ser escutados. Assim eu: trabalharei empiricamente até o momento em que minha voz seja ouvida: aí procurarei dar uma orientação à "coisa"; se a situação político-social for tal que assim me permita, eu passarei simplesmente "para o outro lado".
Eu disse: mas isso é um cinismo oportunista. Ele: é, mas não há outra atitude além desse empirismo. Eu: mas a experiência socialista é algo fabuloso, e a esperança parece estar mais daquele lado do que deste. Ele: de fato, mas veja os congressos, veja a arte russa: é de vomitar. Eu: mas foi Stalin quem arruinou tudo com sua aventura bonapartista, e Stalin não era Lênin.
Ele: justamente, hélas!, Stalin não era Lênin! Eu: no tempo de Lênin, houve Eisenstein, e Maiacovsqui e Malevitch. Ele: e Maiacovsqui suicidou-se. Eu: o marxismo não podia impedir um suicídio. Ele: justamente. Além disso, mesmo sob Lênin, tivemos a formação da NEP. Eu: a miséria parece ser que Stalin inaugurou a tradição do mau-gosto: depois de construir cidades inteiras de horrorosa arquitetura e arte péssima, como obter evolução? Ele: justamente, tal como após a Revolução Francesa: David, a arte pompier, etc. Para mim, o mau-gosto é inato: a pessoa nasce com mau-gosto, assim como outra com bom-gosto e não há nada a fazer.
Eu: mas Homero educou a Grécia. Ele: mas Homero, sob Péricles, por exemplo, foi imposto ao povo. Eu: claro que deve ser assim, para a formação da cultura: o Estado deve interferir para promover a cultura e a justiça. Por essa seleção natural, você justifica todas as injustiças, e dir-se-ia que a Natureza, do seu ponto de vista, é aristocrática, e dois "hasards" regem o mundo: nascer pobre ou rico, nascer com bom-gosto ou com mau-gosto e acabou-se: hierarquia contra a qual não há nada a fazer. Ele: é o Destino: mas não quero dizer que não se deva dar oportunidades a todos. Mas a verdade é que aquele que tem valor acabará por se impor de um amaneira ou de outra.
Eu disse: mas a verdade é que a elite econômica se identifica com a elite intelectual, apoderando-se dela, comandando-a: esse é o drama; e pregando a liberdade individual, o artista acaba a serviço da classe economicamente dominante, e temos a história de que as idéias dominantes são as idéias da classe dominante. Ele: exatamente. Eu: mas eu falo de justiça. E a própria ciência vem mostrar coisas incríveis (conto-lhe a experiência da cultura de moscas submetidas às radiações). Ele conta outra experiência mais incrível ainda, tirada do campo da cibernética: um robot (mecânico) comporta-se de uma maneira,i solado, e de outra maneira em presença de outros! Eu: "incroyable" (Não sei porque —eu sei— não utilizei este argumento a mim favorável eu que serve de apoio à minha idéia de que a Arte não é uma questão pessoal e que o Gênio —admito tacitamente como noção pacífica, para efeitos de conversa, noção que para mim não é nada clara —só aparece sob certas condições históricas— coisa de que Boulez duvida perfeitamente: ele é pelo Gênio individual "tout court").
Então pergunto: você acredita no eterno: Ele: sem dúvida, melhor dizer: permanência. Eu: de que modo, acho estranho que, como você disse mais atrás, você tenha sérias discussões com Stockhausen a respeito do catolicismo quase-místico e anticomunismo ferrenho dele. Boulez conta-me coisas da vida de Stockhausen para explicar a atitude dele, e diz que ele, Boulez, é quase considerado como "comunista" por seus amigos eletrônicos. Eu: não digo nada, mas penso: há mal-entendidos realmente bizarros. Ele diz ainda que a experiência pessoal é algo insubstituível. Digo: sem dúvida, mas a dos outros também.
Ele: sem dúvida, mas a verdade é que eu abandonei família, arranjei emprego para conquistar a liberdade criadora. Você recebeu na Europa o seu primeiro impacto (político), mas para nós que vivemos a coisa intensamente após a Liberação, nós a aborvemos, ela está dentro de nós: não quer dizer que ele esteja ultrapassada, mas não há nada a fazer e só o empirismo nos permite trabalhar; o que importa é produzir a obra. Para você, a "coisa" ainda está "en face", diante de você. Eu digo que: o que me aconteceu aqui foi a consciência do problema: quando Carlos Prestes foi solto, eu tinha 18 anos, pus gravata vermelha, e dois anos depois era pró-Brigadeiro, o pior conservador; ainda que vivendo sob a égide de meu pai, eu também tive empregos; e andei descalço até aos 13 anos, jogando futebol com os operários de todas as cores, eu, pequeno-burguês; e vivi em mim mesmo "o retrato do artista quando jovem"; e na calçada de Osasco, via a turba desfilar frente ao cinema, aos sábados e domingos, declamando para mim mesmo Eliot e Pound, na calçada, à margem; no meu atual estágio consciente, minha atitude é analítica e a coisa parece se colocar forçosamente "en face".
Boulez: le problème est de sortir de tout ça. —Non, mon cher Boulez, le problème est d'y entrer. Ele: talvez que eu fale assim por ter dois anos mais que você: quero te ver daqui a dois anos. A ordem é encontrar o seu caminho pessoal e (gesto de mão ondulante) deslizar (se faufiler) no meio de tudo e de todos (levantando-se para sair)... mas você não parece ter o ar de quem está acreditando... dou um sorriso.
Acompanha-me até o metrô Sully-Morland. Antes, eu havia falado: Fazer obra perfeita na mais alta torre, ah que c'est joli, comme c'est joli, une pierre précieuse si jolie. Ele diz então que é contra essa atitude, mas que a grande maioria jamais entendeu ou entenderá as grandes obras. Eu digo que esse é um problema de educação, e que não é necessário, é impossível, aliás, que todos entendam as grandes obras, mas que é necessário que essas grandes obras atuem socialmente e se transformem em vida (ação, compreensão) para esses que não têm a capacidade de penetrá-la completamente, preparando desse modo o campo para uma grande e nova cultura. Fora isso, pode ser que eu tenha sido atacado pelo "virus marxiste"... Ele: não, não é isso, o problema existe, não foi ultrapassado. Eu: bem, enfim, a ordem é trabalhar e (rindo) espero que você mesmo não acabe se transformando num Pierre Précieux!... Bem, voilá, ce sont les doutes d'un brésilien. Au revoir, merci.
Quanto ao mais, "tombàmos" de acordo que a força criadora é a força criadora e que a obra de arte não precisa ser necessariamente política.

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