São Paulo, domingo, 12 de março de 1995
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Previsto & imprevisto

Décio Pignatari conta seus encontros com Pierre Boulez

DÉCIO PIGNATARI
ESPECIAL PARA A FOLHA

Combater as heteronomias —eis aí uma palavra de ordem e um lema-chave para o entendimento mais claro de muitos aspectos importantes das vanguardas artísticas e de outras manifestações intelectuais das décadas de 50 e 60. Par efeitos comunicacionais mais amplos e imediatos, o Aurélio não deixa de ser um adjutório: "Heteronomia". S.f. Filos. Condição de pessoa ou de grupo que recebe de um elemento que lhe é exterior, ou de um princípio estranho à razão, a lei a que se deve submeter. Ant. : "Autonomia". Reforço a idéia para o leitor, remetendo-o ao célebre poema do "guardador de rebanhos", de Fernando Pessoa/Alberto Caeiro, que assim termina:
"Nunca ouviste passar o vento.
O vento só fala do vento.
O que lhe ouviste foi mentira,
E a mentira está em ti".
Segue-se que: a poesia só fala de poesia, a pintura só fala da pintura, a música só fala da música, a arquitetura só fala da arquitetura. Ou ainda, para encerrar este tópico de citações, o final de um poema de Archibald McLeish, dos anos 20? "Um poema não deveria querer dizer / Mas ser".
No século passado, entre as muitas sublevações que provocou, a revolução industrial, com a criação, aprimoramento ou expansão dos meios de reprodução, pôr em causa e em cheque as artes tradicionais, que começaram a perder a sua "aura" benjaminiana. Três filósofos deram respostas sistemáticas a esse terremoto socioprodutivo —Hegel, Marx e Comte— mas só o primeiro deixou uma estética armada e amarrada. Não é, pois, de estranhar-se que tenha impregnado as idéias estéticas que maturaram nas mentes daqueles tedescos adoradores de Roma, tais como Worringer, Wõlfflin e Fiedler, pioneiros modernos da busca da essência da arte, ou seja, de sua estrutura abstrata oculta na efabulação temático-anedótica (o hegelianismo não facilmente detectável de Paul Valéry, grande guru de João Cabral de Melo Neto, não impede de alinhá-lo entre os buscadores do "eidos" artístico, por pessoal que tenha sido o seu percurso).
Nessas migrações e transmigrações de idéias, por aqui aportou, no pós-guerra, um romano tupiniquim, Waldemar Cordeiro (optou pela nacionalidade brasileira, na maioridade), encharcado, ao mesmo tempo, de Marx e dos "alemães romanos"; tornar-se-ia o reconhecido líder do nosso PC (Partido Concreto), embora não necessariamente o melhor artista do grupo. Sua contraparte, na Argentina, era Tomás Maldonado, discípulo de Max Bill, artista, arquiteto e designer-líder internacional da arte concreta e que teria o argentino como sucessor na direção da Hochschule fr Gestaltung (Escola Superior da Forma), de Ulm, a sucessora de Bauhaus.
Teve então início a grande obra de reengenharia da arte, da poesia e da música brasileiras: opor barreiras, levantar barragens e fulminar as heteronomias —os psicologismos (só a "gestalt" era aceita), sociologismos, nacionalismos, folclorismos, hedonismos, esoterismos. Por exemplo: "Não me venham com explicações psicológicas para a arte". Isto implicava ser: anti-expressionismo, anti-surrealismo, anti-bongostismo francês, italiano ou franco-italiano (figurativo ou abstrato), anti-Portinari, anti-jdanovismo (mas Cordeiro era bem stalinista...), anti-humanismo, antimuralismo mexicano, etc, etc. E a favor de: uma arte "pura" (= problemas artísticos claramente explicitados, soluções mais claras ainda), quase que ao nível da evidência, mesmo popular (portas de tinturaria, p. ex.), jamais os primitivos, loucos e crianças (à exceção, quem sabe, de José Antônio da Silva).
Os artistas visuais concretos eram jejunos em matéria de música, à exceção de Sacilotto, que já curtia Schoenberg: Cordeiro era o mais ignorante de todos. Mas era ótimo em matéria de contatos (fora caricaturista na Assembléia Legislativa, de São Paulo).
Nós, os poetas, estávamos bem informados, graças a empenhos próprios e graças a Koellreuter, que formou os músicos brasileiros de vanguarda, na sua Escola Livre de Música. Pois, em 1954, outubro, creio, Pierre Boulez baixou no Brasil, a bordo da Cia. Jean-Louis Barrault/Madeleine Renaud, na qualidade de diretor musical. Waldemar Cordeiro, que não falava qualquer outra língua, além do italiano e do ítalo-brasileiro, encontrou-o numa reunião social e promoveu, de alguma forma, o encontro do músico conosco. E lá estávamos, naquela manhã, na calçada oposta à do Teatro Santana, rua 24 de Maio, à espera do grande músico, numa brecha de seus ensaios (uma das obras do programa era o oratório "Christophe Colombe", de Darius Milhaud, texto de Paul Claudel).
E o baixinho cruzou a rua, energético, veio ao nosso encontro, para logo ser perguntado quando iria musicar o "Un Coup de Dés", de Mallarmé ("On verra" disse ele). Temeroso e fervoroso, comuniquei-lhe que estaria em Paris no verão do próximo ano (deu-me telefone e endereço).
Durou 25 meses a minha aventura européia, uma aventura decisiva, em companhia de minha mulher, Lila, e de cem dólares mensais (cerca de 450, nos dias de hoje) —11 dos quais em Paris, sendo francês a minha segunda língua. Com a cabeça feita dentro dos moldes do combate às heteronomias e da "independência rigorosa" a que se referiam os músicos da vanguarda internacional reunidos em torno da associação cultural do Domaine Musical, patrocinadora dos concertos do mesmo nome e fundada por Boulez/Barrault/Renaud, sob a presidência da mecenas Madame Léon Tézenas e da qual Boulez era "Directeur et Trésorier" —o meu topete me levava a penar que a França nada tinha então a oferecer em matéria de artes visuais e literatura (a verdade da arte e do desenho industrial, para mim, estava na Alemanha). Por isso, liguei-me aos músicos, à Cinemateca Francesa, a alguns americanos contemporâneos da "beat generation" (Olson, Creeley, Croman)... e à cidade de Paris.
Durante todo esse tempo, minha vida intelectual e artística atravessou e foi atravessada por Pierre Boulez, que foi de uma compreensão e de uma generosidade inesquecíveis. Semana sim, semana não, convidava-me para almoçar, através do lendário "pneumatique" (mensagens rápidas, em cápsulas acionadas por aspiração de ar, através de uma rede de tubulações; o sistema foi extinto na década de 80).
Eu não tinha muito sucesso na venda de ingressos para os espetáculos (a fim de garantir o meu): nem por isso, deixava ele de me levar a toda parte, reuniões e espetáculos, e a apresentar-me a pessoas, de John Cage a Hermann Scherchen, ou de receber-me em seu apartamento, em Sully-Morland. E eu sempre um tanto contrafeito: falta de dinheiro e de formação musical, além das crises criativas (entre a prosa e a poesia e a crise ideológica ante novas solicitações (existencialistas, marxistas).
Dois espetáculos marcantes, em minha lembrança: uma encenação dupla de Barrault e a estréia mundial de "Déserts", de Edgard Varèse (a primeira, em 1954; a segunda, no ano seguinte, creio eu). No primeiro caso, foram encenadas "Berenice", de Racine, e "Um Sonho de Prisioneiros", do inglês Christopher Fry. No clássico francês, belos cenários inspirados na Vila dos Mistérios, de Pompéia, mais o talento da atriz Marie Bell (embora destituída de maiores atrativos físicos: quando observei isso a Boulez, ele fez uma cara muito feia...); e vaias para o segundo espetáculo, metade da sala abandonando seus lugares (a anglofobia estava em alta, talvez ainda por força das humilhações sofridas por De Gaulle em seu exílio inglês, durante a guerra, sem falar no desastre de Dien Bien Phu, na Indochina (Vietnã).
Na prémière de "Déserts", assistiu-se a uma pateada histórica (é uma peça para conjunto orquestral e efeitos eletro-acústicos). Scherchen regia o primeiro, Michel Philippot se encarregava dos segundos; Boulez, amigos, Lila e eu, num balcão, xingando os xingadores; quanto mais este vaiavam, mais Philippot aumentava o volume das caixas: balbúrdia e caos de cidade bombardeada.
Em certa altura, Boulez se volta para mim e diz: "A obra não é lá essas coisas, mas é preciso apoiar". Depois fomos jantar e conversar juntos: Varèse, Schercher, Boulez, Philippot, Pierre Souvitchinsky, Lila, eu, outros. Lembro-me ainda de sua imagem à beira do Sena, inverno, casaco de aviador (sobra de guerra), impressionado com o ímpeto das águas, na enchente do degelo daquele ano (fevereiro ou março de 1955). Em março, nos despedimos, depois de um último almoço e de um tremendo papo-cabeça, que registrei na mesma noite e que reproduzo ao fim destas minimemórias boulezianas.
Em abril fui à Provença e a Londres; no mês seguinte, partiria para Munique, onde viveria seis meses (incluindo um inverno pavoroso) e onde se decidiria um dos possíveis destinos da poesia concreta, já quase toda pronta nos campos e espaços, quando cheguei de torna-viagem, em julho de 1956, depois de haver percorrido ainda Itália, Espanha e Portugal.
Quando ouvi, pela primeira vez, em gravação, "Le Marteau sans MaŒtre", aferrou-me um certo sentimento de frustração: um nada especial pós-sprechgesang (canto falado); um belo pós-webernismo orquestral estranhamente orientalizante —e uns versos pouco notáveis de René Char; já, ao ouvir o "Gesang der Jnglinge" (O canto dos adolescentes), de Stockhausen, julguei ouvir um sonho a realizar-se. Para quem esperava Mallarmé, não era fácil contentar-se com René Char, ou alguns anos depois, em "Pli selon Pli", com um Mallarmé menos instigante.
Nos anos 60, enquanto concentravam potência e "pop culture" e a contra-cultura, a luta contra as heteronomias se espalhava para outras áreas, que então se coligaram sob a etiqueta genérica de estruturalismo: linguística, semiologia, semiótica, antropologia, psicanálise lacaniana, juntamente com o resgate do formalismo russo. As próprias idéias de Marshall MacLuhan inseriam-se nesse contexto: "o meio é a mensagem" só poderia ter brotado da mente de quem conhecia muito bem Baudelaire, Mallarmé, Pound, Joyce.
Duchamp começou a disputar com Mondrian o direito de arena cultural, os americanos disputando aos europeus, pela primeira vez, o mercado da arte, o mercado das idéias para as não-massas. Deu-se então retorno do oprimido, com a volta, em avalanche, de todas as abordagens, manifestações e explicações heteronômicas: baralhadas todas as cartas, o jogo começava de novo.

(Continua)

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