São Paulo, domingo, 12 de março de 1995
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Elogio humanista da velhice

BENEDITO NUNES
ESPECIAL PARA A FOLHA

"Memória e Sociedade (Lembranças de Velhos)" não é, a juízo da autora, nem sobre a velhice, nem sobre a memória: "Fiquei —diz Ecléa Bosi, referindo-se às lembranças aí recolhidas, e que formam a maior porção do livro— na intersecção das duas realidades".
Mas, embora se possa interpretar tal advertência como cláusula de prudência metodológica, restritiva de seu alcance abrangente, o que, a meu ver, justifica a longa carreira desse trabalho universitário de psicologia social, na origem uma tese de livre-docência, pela primeira vez publicada em 1973 e agora em 3ª edição, é o próprio caráter interseccionante da investigação aí empreendida, cruzando a teoria e a prática, a linguagem oral e a linguagem escrita num texto desenvolto, analítico e meditativo, que recorta tanto o domínio das ciências sociais quanto o da tradição humanística.
Mas, vinculados que estão à experiência em comum que os gerou, cada testemunho é ponto de intersecção de uma prática de anamnese com a teoria da memória usada como hipótese de pesquisa: quanto mais se libera o homem da premência do agir, mais espontâneo é o fluxo das lembranças (Bergson), sendo, portanto, a velhice a idade por excelência da rememoração (Halbwachs). E se levarmos em conta o infortúnio dos velhos no mundo de hoje, problema enfrentado pela hipótese, e que mobilizou aquela prática, "Memória e Sociedade", pela adesão afetiva de sua escrita à situação dos depoentes, alcança o vulto de uma apologia da velhice para nossa época. E é por aí que o livro recorta a tradição humanística.
As apologias da velhice, que procedem das fontes romano-antiga e renascentista da tradição humanística, são aplicações do regime da sabedoria estóica e epicurista à última etapa da vida humana. Confrontam, a exemplo do diálogo ciceroniano "De Senectute" e de certas páginas de Montaigne, as vantagens e desvantagens do período de decrepitude física. E fazem, repetindo Platão no início de "A República", o elogio da idade avançada, pela aptidão para rememorar o passado com que a favorece o seu estado de inatividade. "O fruto da velhice, venho repetindo, é a lembrança...", resume Catão no diálogo de Cícero.
A Antiguidade prezou na lembrança o dom da velhice à vida política; era a razão de ser da autoridade dos anciões, fundada no saber de experiência, traduzido em conselho —fonte da tradição ou da memória comum e liame da continuidade histórica entre as gerações.
A sociedade industrial em que vivemos rompeu esse liame, desvalorizou o saber de experiência, corroeu a memória coletiva, desvalorizou a lembrança; portanto, desapossou a velhice de seu dom à sociedade e à cultura. Da natural condição de sobrevivente de uma geração que ele é, em todas as épocas e em todos os grupos, como pensava Ortega y Gasset, o homem idoso, porque improdutivo, e improdutivo porque inativo, passa, muito embora acobertado sob a etiqueta clínica protetora de representante da "terceira idade", ao anonimato dos excluídos sem voz.
Ao levar os velhos, em sua pesquisa, num rasgo de pioneira ousadia há 20 anos atrás, à prática da reminiscência, então condenada pelos gerontologistas como "fuga da realidade presente", Ecléa reagia à rejeição marginalizadora que estigmatiza os anciões na era da cultura tecnológica.
Assim orientada, a apologia da velhice em "Memória e Sociedade" reencontraria, seguindo o caminho psico-sociológico de Halbwachs, o tom elogioso do humanismo: o cultivo da lembrança, fruto maduro da idade avançada, em estado de inatividade, é uma tarefa que os velhos recebem de todos —"a obrigação de lembrar, e lembrar bem"—, pela qual respondem perante as novas e as velhas gerações.
O ancião "não sonha quando rememora o passado: desempenha uma função para a qual está maduro, a religiosa função de unir o começo ao fim...". Porém, mais do que meio de eventual catarse, essa função, hoje socialmente bloqueada e agora exercida em proveito da defesa do idoso, é a que se exterioriza no ato de narrar o passado, elaboração de um enredo com a matéria das lembranças, síntese dos dispersos momentos de uma vida, formando a continuidade da história que lhes dá sentido.
Dessa maneira, a rememoração, a que a pesquisadora instou os seus entrevistados, ultimou-se no relato autobiográfico de cada depoente, arma defensiva por eles mesmos forjada.
Consequentemente, unindo "o começo ao fim", o passado ao presente, a narração rememorativa torna-se recuperação do tempo perdido: o velho se reconheceria como velho, recobrando sua identidade individual e social menosprezada. Mas, assim, o dom da memória amadurecida, que frutifica em narrativa, é o mesmo da revivescência proustiana, suspensiva da dissipação do tempo. E, por isso, rebela-se a lembrança dos velhos contra o presente, repondo as coisas "em seus lugares antigos".

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