São Paulo, domingo, 12 de março de 1995
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Metáforas barrocas do Brasil

JOÃO ADOLFO HANSEN
ESPECIAL PARA A FOLHA

"Do Barroco", de Afrânio Coutinho, reúne 23 textos escritos entre 1950 e 1993, além de uma introdução, um excurso autobiográfico e uma bibliografia organizada pela Oficina Literária Afrânio Coutinho, com os trabalhos existentes sobre o assunto na biblioteca do autor.
O primeiro, "Aspectos da Literatura Barroca", foi a tese apresentada em 1951 no concurso de cátedra do Colégio Pedro 2º (RJ). Sendo o mais antigo, lê-se com prazer, pois continua instigante. Quando Coutinho o escreveu, os estudos literários na Europa tendiam a deslocar-se das críticas de fundamento neoclássico ou romântico, que até então avaliavam as artes seiscentistas na esteira de Croce, em juízos moralistas de gosto, como "decadência". Ou, positivamente, como "originalidade" incondicionada, no caso de vanguardas modernistas. Passava-se à avaliação histórica, em que a obra de Wõlfflin era fundamental, ainda quando criticada devido ao pressuposto expressivo que constitui a categoria "O Barroco" como informalidade estética.
Em 1953, por exemplo, Morpurgo-Tagliabue propunha que, transferida das artes plásticas para as letras sem maiores mediações, a informalidade pressuposta na categoria é exterior às práticas de representação seiscentistas, regradas rigidamente pela retórica aristotélica. Poderia ser aplicada também à pintura impressionista, com resultados análogos. E, quando entendida como o universal do Espírito Humano da imaginação de Eugénio D'Ors, metade das artes produzidas no mundo seriam "barrocas". Vazia, a categoria é fútil.
Tagliabue referia-se então ao fato de a maior parte das interpretações serem heurísticas, isto é, feitas da perspectiva das apropriações contemporâneas que rotineiramente concebem o passado como uma etapa para si mesmas e que, por isso, costumam concebê-lo de modo unilateral, a-histórico ou trans-histórico, quando projetam nele os interesses do presente.
Nos usos, contudo, o anacronismo de "O Barroco" tinha sido consagrado, ocorrendo com a categoria o que acontece com o colecionador de borboletas que classifica espécies em gavetas previamente preparadas, como dizia Alan Boase: a classificação e as gavetas foram tidas por evidentes e os estilos e os vários tempos do século 17 foram catalogados como espécies do gênero "O Barroco".
Na tese de 1951, Coutinho citava uma bibliografia atualizadíssima, em que "O Barroco" já era positividade. Propôs então que se restringisse a aplicação do termo às letras e às artes seiscentistas, considerando que sua extensão para outras obras e tempos torna a categoria indeterminada. Retomaria a idéia em texto de 1986, "O Barroco". Em outros, talvez devido ao seu pressuposto estilístico de que "o Brasil nasceu barroco", parece mudar de opinião.
Em "A Bahia Barroca", de 1992, é o espírito de conciliação jesuítico que mistura Deus e o diabo, marcando a nossa mentalidade com o éthos "barroco". O mesmo "espírito barroco" gera "nossa independência mental desde os primeiros momentos", quando se inicia o processo de descolonização que produziu "verdadeira cultura autóctone" ("Barroco e Brasil - 2"), tema já discutido pelo autor em "A Tradição Afortunada" (José Olympio, 1968). Conforme Coutinho, "O Barroco" —ou os estilos unificados pelo termo— é exclusividade da Espanha: "(...) o Barroco passou por cima de Portugal, que lhe ficou praticamente indiferente e imune..." ("Barroco e Brasil-2", "O Barroco e a Mestiçagem Americana").
Entre 1580 e 1640 —tempo da União Ibérica em que Portugal esteve sob domínio espanhol—, o nacionalismo luso teria impedido "O Barroco" de aclimatar-se na terra de D. Francisco Manuel de Melo e de Jerônimo Baía. Na colônia catequizada pela Cia. de Jesus, porém, Nóbrega e Anchieta, no 16, Vieira e Gregório de Matos, no 17, Nuno Marques Pereira e os acadêmicos do 18 já eram decididamente brasileiros: barrocos. Nada teriam em comum com Portugal, mas, provavelmente, tudo com a Espanha. A adaptação a "O Barroco" seria "um recurso inconsciente de luta antilusa por parte dos brasileiros". Por isso, "Gregório é o Quevedo brasileiro, o primeiro a dar o grito de independência antilusa na língua e assuntos, usando a sátira mais cáustica contra a população coeva".
Nessas colocações, ecoa a polêmica periodização estilística da literatura brasileira que se pode ler explicitada na tese "C", de "Vantagens da Periodização Estilística". Nela, Coutinho prescreve o método imanente do New Criticism para o estudo do universo auto-suficiente das obras de arte. Sua tese opõe-se à historiografia que considera básicas as determinações extra-literárias que o New Criticism ignora ou exclui.
Assim, não importa a determinação colonial, já era brasileira a literatura dos barrocos Nóbrega e Anchieta, negando-se que tenha sido constituída romanticamente como brasileira a partir do século 19, em bases nacionais e nacionalistas. Por isso, é o modo como tais determinações extra-literárias são articuladas à crítica e à história literárias que define a questão, quando se conceituam "literatura", "colonial", "Brasil" e "O Barroco".
Pode-se, com rigor, falar de "literatura brasileira" na colônia ou, simplesmente, de "literatura", nos séculos 16 e 17? As expressões são anacronismos. Antes de 1822, óbvio, não há "Brasil" na acepção de "nacionalidade" implícita em "literatura brasileira". E a prática e o conceito de "literatura" datam do Iluminismo. Pressupõem os Estados nacionais; a ordenação progressiva do tempo; a impossibilidade de repetição histórica; a separação de "público/privado"; o indivíduo burguês, auto-representado como livre-concorrência, direitos, consciência e psicologia; a extinção da retórica e da "mímesis" aristotélica; a "originalidade" como mercadoria cultural; a nova divisão dos saberes, em que o livro de ficção ou de poesia é Arte, como "desinteresse estético" etc.
Neste sentido, obviamente, não há "literatura" antes do século 19, ainda que na colônia de Portugal tenham existido práticas letradas, canais de circulação e difusão, público e consumo de obras que não dependiam necessariamente da alfabetização e dos meios impressos.
As obras eram produzidas e consumidas segundo outros critérios e valor. De modo acentuadíssimo, o utilitário, adequado à celebração e à crítica da hierarquia, utilidade que a conceituação histórico-estética de "literatura" costuma excluir ou desdenhar, a partir da segunda metade do 18.
Falta evidência empírica para a hipótese interpretativa de "O Barroco" como "independência mental" brasileira já na Colônia. A análise pode ser certeira, porém, quando se especifica materialmente a metáfora da "mestiçagem" atribuída a Gregório de Matos ou Vieira: "O grande processo de diferenciação, produto da descolonização, não foi possível senão como resultado das intensas miscigenação e aculturação aqui executadas espontaneamente...".
Ou seja: a unicidade da autonomia "brasileira" das obras coloniais é improvável, mas a metáfora étnica aponta para os processos materiais de sua produção e consumo, significando que resultam das apropriações de esquemas transnacionais —obviamente também portugueses—, que então definiam a excelência da imitação, como o catolicismo contra-reformado, a retórica, a ética e a etiqueta das agudezas da racionalidade de corte absolutista. As apropriações transformam os esquemas e os adaptam às circunstâncias do lugar, produzindo valores de uso determinados também pela limitação material. Nisso são "brasileiras" as obras.
"Mestiços" nesta acepção, Gregório ou Vieira não poderiam ser apenas espanhóis ou só brasileiros. Foram luso-brasileiros. O exame estilístico das apropriações permite a crítica da tese da imitação passiva de idéias importadas, certamente, mas reduzir as obras a expressão de uma originalidade incondicionada, "Brasil", contraria a própria noção veiculada pela metáfora da "mestiçagem", além de deslocar determinações fundamentais articuladas nos estilos de então, como o monopólio, o escravismo, a censura intelectual, a Inquisição e as próprias instituições administrativas portuguesas, encarregadas de manter tais determinações atuantes.
Seria oportuno que fossem mais estudadas as condições de produção das letras na colônia, observando-se a inserção do letrado nas práticas de representação. É um tipo detentor de técnicas simbólicas quase sempre subordinado aos homens de poder local, que também eram homens do poder real metropolitano. Seu discurso invariavelmente põe em cena uma contradição: a da representação da generalidade dos interesses particulares locais e de generalidade dos interesses do Império Português.
Tal contradição sempre encontra formulação nas agudezas esperançosamente emulatórias das obras de autoridades, segundo as oportunidades da hierarquia. O levantamento sistemático dessas posições seria útil para se determinar de vez o alcance de formulações nacionalistas que propõem o antilusitanismo das letras coloniais. Caso se comprovasse a unicidade brasileira —e não a contradição luso-brasileira das mesmas—, também se evidenciaria um "espírito americano", já formado no 16 e 17.
Ora, muitos desses discursos hoje lidos como "literatura" são resíduos de práticas "mestiças", em que os poderes instituídos eram por vezes atacados com a violência simétrica da agudeza, ambas típicas de uma formação pré-iluminista. Mas é preciso lembrar que, além de quase nada se saber das apropriações empíricas desses discursos por grupos de interesse que poderiam usá-los num sentido antimetropolitano explícito, esquece-se com demasiada pressa nacionalista que, no 17, essa crítica é orientada por outra forma de tempo, que então é teológico, outra concepção de pessoa, que é livre porque subordinada, e outra doutrina do signo, que participa na substância divina.
No mundo luso-brasileiro do 17 —e por "17" entenda-se o lapso temporal de 1580 a 1750—, "crítica" não significa o projeto de negação e superação da ordem que se aprendeu com a França no final do 18, mas reiteração obsessiva de um antigo uso que está sendo subvertido pelos abusos do privilégio e pelo avanço de grupos institucionalmente não-autorizados.
É preciso pensar em rebeliões feitas para manter o costume. É o caso, exemplaríssimo, do satírico na poesia atribuída a Gregório de Matos e Guerra: personagem cujo florete verbal, agudo e elegante no 17, aparece hoje como um grosseiro porrete defensor do privilégio.
A suposta oposição univocamente "brasileira", que transforma o fidalgo seiscentista numa vanguarda da Independência, não é contemporânea de Gregório ou Vieira, enfim, mas posterior, e resulta da projeção da ideologia progressista do intérprete nos resíduos. Por isso, como Coutinho propõe, com razão, as apropriações não devem ser subestimadas.
Obviamente, a divergência de interpretação em nada diminui o valor de "Do Barroco". Como diz Coutinho em "Minha Viagem", "minha regra de vida sempre foi não perder tempo". E não se perde, com certeza, pois é justamente o tempo o que se aprende ao lê-lo. Afinal, "Do Barroco" repõe a questão política do valor cultural das apropriações do passado num momento em que a originalidade neobarroca também trabalha para as conciliações da tropicalidade neoliberal.

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