São Paulo, domingo, 12 de março de 1995
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Vieira e a leitura alegórica do universo

FÁBIO DE SOUZA ANDRADE
ESPECIAL PARA A FOLHA

Ao jovem Drummond, Mário de Andrade recomendava, antes de mais nada, a leitura dos brasileiros e contemporâneos. Só então viriam os demais autores, distantes no tempo e no espaço. Descontada a militância modernista, contava com o bom senso do poeta para equilibrar o interesse pela novidade e pela história, sem o que nenhum "conhece-te a ti mesmo" se completa.
A sensatez que Mário dava de barato em Drummond nem sempre se repete na crítica contemporânea. Escondida sob pilhas de "últimas palavras" sobre Guimarães Rosa e Clarice Lispector, esconde-se, quase completamente despercebida, boa parte da literatura anterior ao romantismo, fazendo pouco de nossa ignorância e indiferença.
Remando contra a maré da moda, obras como a que Alcir Pécora dedica ao conjunto dos sermões do Padre Antonio Vieira são exemplos de como nem tudo está perdido. Em Teatro do Sacramento, Pécora publica o resultado de uma pesquisa de anos em que se dispôs a enfrentar o mar de aparentes contradições que a figura múltipla do jesuíta sugere.
"Teatro do Sacramento" faz par com lançamentos recentes, como a "Dialética da Colonização", de Alfredo Bosi, os "Capítulos de Literatura Colonial", de Sérgio Buarque de Holanda, ou "A Sátira e o Engenho" de João Adolfo Hansen.
Seguro da unidade na obra vieiriana, Pécora sai em busca de um eixo articulador que dê conta das relações entre seus três principais aspectos. Três, pois estamos às voltas com um escritor que, à maneira da Trindade católica, é ao mesmo tempo uno e tripartite.
Convivem em Vieira o estilista barroco, "imperador da língua portuguesa", segundo Pessoa; o evangelizador preocupado com a condução das coisas terrenas segundo os princípios da Ordem divina; o conselheiro de reis, político empenhado na construção da grandeza do Estado católico por excelência, Portugal.
Pécora mostra como o escritor, o político e o teólogo se esclarecem reciprocamente. Trabalhando nos limites da ortodoxia, as formulações agudas e extremas do Padre explicam-se a partir de uma leitura do mundo que deriva de síntese própria de preceitos escolásticos, neotomistas e inacianos.
A retórica de Vieira funda-se sobre a apropriação da noção de unio mystica, o arrebatamento que eleva o contemplar solitário a Deus, deslocando seu centro da súbita Graça divina para o campo da ação humana cotidiana, capaz de produzir, metódica e voluntariamente, um caminho natural para a participação na essência divina.
A eficácia desta ação depende da submissão obediente e militante das vontades individuais à hierarquia da Igreja, que, além de ordená-las coletivamente, "é depositária dessa possibilidade de presentificação progressiva e histórica do divino", os sacramentos, um "canal direto com o divino".
É nestes "atos institucionais" da Igreja, particularmente na Eucaristia, que está a semente da possibilidade de encontrar Deus encoberto em todos os fenômenos do mundo. Nos sermões, o modo sacramental espelha-se tanto na concepção figural da história (os acontecimentos são tipos que se repetem, retomam a Origem e antecipam o Fim, atualizando, no plano terrestre, os planos providenciais), como na leitura alegórica do universo, que revela uma relação analógica misteriosa (proporção), guardada por todas as coisas do mundo, "armazém divino", como vestígios da criação.
No plano político, os sermões relacionam a aproximação do divino e do humano no curso da história ao fortalecimento de Portugal, renovando-se com os portugueses a aliança figurada pela eleição do povo de Israel.
Pécora analisa como esta unção da Monarquia portuguesa se articula, em Vieira, com a filosofia política do 17 (especialmente a doutrina dos dois corpos do rei), no contexto milenarista e messiânico que marcou o período da Restauração. Estado-instrumento da realização da Ordem universal, deve-se ler a história portuguesa como história sagrada, realização progressiva e natural da finalidade determinada pela Providência.
Em seus três aspectos, teológico, retórico e político, o Teatro do Sacramento vieiriano é hermenêutica e ação: em sua retórica substancializada, interpreta analogicamente o sentido dos sinais misteriosos da presença divina no mundo e, ao mesmo tempo, apressa a realização do tempo harmônico futuro anunciado, exortando os homens a produzir diligentemente os planos da Providência.
Não há chave para Vieira fora desta duplicidade, eis o caminho que Pécora encontrou para exorcizar com sucesso tanto as leituras formalistas, comuns e anacrônicas, como as conteudistas, cegas à particularidade teológica do discurso ardiloso do Padre.

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