São Paulo, domingo, 12 de março de 1995
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As ilusões da literatura e a ficção comunista

MARIO VARGAS LLOSA
DO "EL PAÍS"

Condenados a uma existência que nunca está à altura de seus sonhos, os seres humanos tiveram que inventar um subterfúgio para escapar de seu confinamento dentro dos limites do possível: a ficção. Ela lhes permite viver mais e melhor, ser outros sem deixar de ser o que já são, deslocar-se no espaço e no tempo sem sair de seu lugar nem de sua hora e viver as mais ousadas aventuras do corpo, da mente e das paixões, sem perder o juízo ou trair o coração.
A ficção é compensação e consolo pelas muitas limitações e frustrações que fazem parte de todo destino individual e fonte perpétua de insatisfação, pois nada mostra de forma tão clara o quão minguada e inconsistente é a vida real quanto retornar a ela, depois de haver vivido, nem que seja de modo fugaz, a outra vida —a fictícia, criada pela imaginação à medida de nossos desejos.
Diferentemente da ficção que se identifica como tal e cuja função em nossas vidas é enriquecedora, ou pelo menos benigna, a outra, aquela que vive emboscada atrás das suntuosas faces da religião ou da ciência, pode ser maligna, fonte de sofrimentos e de extravios para a espécie humana.
Para comprová-lo é preciso ler o livro que acaba de ser publicado na França por François Furet, o historiador especialista na Revolução Francesa, "Le Passé d'une Illusion" (O Passado de uma Ilusão), cujo subtítulo expressa com mais precisão o ambicioso propósito que o guia: "Ensaio Sobre a Idéia Comunista no Século 20.
Seu tema, sem dúvida o mais importante entre todos que encheram de ruído o século 20, não é a história real do comunismo, e sim a do extraordinário contraste existente entre essa história objetiva e sua visão idealizada ou mítica e a maneira como esta última terminou, ao longo de quase 70 anos, por se sobrepor a esta e por substituí-la para todos os efeitos intelectuais e práticos.
Furet mostra mais uma vez, com provas esmagadoras, o que já demonstrou exaustivamente: desde que Lenin desembarca na estação na Finlândia e coloca em marcha a Revolução, assim como todas as etapas seguintes, há informações suficientes para se saber que o que está acontecendo na atrasada Rússia —uma autocracia há séculos— é uma atroz caricatura do sonho messiânico da sociedade sem classes, do paraíso do proletariado, do reino da fraternidade coletivista. E que, desde a tomada do poder pela minoria de revolucionários profissionais encabeçados por Lenin, o Partido Comunista elimina toda forma de pluralismo e democracia —interna e externa à organização— e monopoliza todas as articulações de um estado que, como uma hidra, estenderá seus tentáculos até as últimas extremidades do corpo social.
Os grandes crimes, a censura, a perseguição aos dissidentes, a cortina de fumaça ideológica para ocultar o que é mera luta de facções ou pessoas pelo poder absoluto, o desprezo total pelas mais elementares formas de consulta democrática e pelos direitos humanos básicos não são uma perversão stalinista: são a realidade primeira da Revolução, as regras do jogo e os métodos que Stalin não fará mais do que aperfeiçoar até extremos dementes.
A luta contra o fascismo contribuirá de maneira decisiva para dotar a URSS de uma auréola democrática, apesar de todos os testemunhos em contrário que partam dela, e para manter a ficção de que, comparado com a rigidez ditatorial e belicista de um Mussolini e do racismo sanguinário e os planos imperialistas de Hitler, o regime presidido por Stalin, não importa quão grandes os erros que possa ter cometido, representa um modelo social moralmente superior, de implícita generosidade e idealismo.
Isto é verdade apenas na retórica e na propaganda, não nos fatos, pois os extermínios coletivos perpetrados na própria Rússia e nos países satelizados dentro da chamada URSS são tão impiedosos quanto os que cometeram os nazistas (e muito mais numerosos).
O pacto germano-soviético, a partilha da Polônia que fazem Hitler e Stalin e, mais tarde, a formidável conquista territorial conseguida pela URSS no pós-guerra, consolidada em Ialta —complementada com a instalação de um grupo de Estados vassalos no coração da Europa— não modifica substancialmente, diante de uma ampla coletividade que ultrapassa de longe os adeptos do marxismo, a idéia de que, apesar de tudo, o sistema comunista é essencialmente benigno, "o horizonte insuperável de nossa época", segundo Sartre, e de que, comparada com os EUA e o resto do Ocidente, a URSS simboliza o progresso da razão histórica e da justiça social.
Furet oferece exemplos esmagadores de como esta ficção é impermeável a toda refutação prática. Os atropelos e as perseguições movidas pelo macartismo nos EUA, que duram cerca de quatro anos e colocam na prisão ou obrigam a exilar-se um punhado de pessoas, provocam no mundo todo uma indignação infinitamente maior do que o Gulag soviético, onde perecem 20 milhões de pessoas, a imensa maioria das quais não cometeu outro delito que o de haver despertado os temores de um poder paranóico.
Pelas páginas do livro de Furet desfila também aquele ilustre, porém patético, cortejo de militantes e intelectuais que tiveram a lucidez de compreender a impostura e a coragem de denunciá-la, em cada um dos atos da grande comédia: André Gide, Thomas Mann, George Orwell, Albert Camus, entre outros.
Seu pequeno número, comparado à multidão dos que se calaram, ou mentiram, ou enganaram os demais, surpreende menos do que o saber que entre esses últimos figuram os príncipes da inteligência e da cultura de nosso século.
É preciso agradecer a François Furet o grande esforço que levou a cabo para impedir que o misericordioso esquecimento —outra forma de impostura— caia sobre essa ficção histórica, injúria e opróbrio de nosso século. Porque sem uma memória vívida daquela trágica experiência, corremos o risco de vê-la repetir-se. Pois já está claro que não podemos viver sem mentiras, e que não nos bastam as mentiras —belas e saudáveis— da literatura.

Copyright Mario Vargas Llosa. Os direitos internacionais deste texto pertencem ao jornal "El País". O Mais! publica quinzenalmente a coluna "Pedra de Toque"

Tradução de CLARA ALLAIN

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