São Paulo, domingo, 12 de março de 1995
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Um brinde fora do lugar

JURANDIR FREIRE COSTA
ESPECIAL PARA A FOLHA

Por intermédio de Flávio Pinheiro, tive acesso ao texto de Richard Rorty sobre "A Rebelião das Elites", de Christopher Lasch. Um resumo do livro apareceu na Folha há pouco tempo. Rorty critica Lasch e propõe dois brindes às elites, a título de provocação intelectual.
A crítica apóia-se em dois principais argumentos. Primeiro, Lasch seria um passadista empedernido e uma analista político de um olho só. Atacar cegamente as elites é sinal de obtusidade. Num mundo economicamente globalizado, pensar numa sociedade sem especialistas ou numa gerência de negócios comunitária e democratizada é derrisório.
Lasch, afirma Rorty, agride o desenvolvimento político e tecnológico norte-americanos, como se nada de bom tivesse surgido do avanço das ciências e da luta pelo progresso social. Seu mundo ideal é uma fantasia fabricada pelo marxismo amaciado, tão ao gosto dos radicais dos anos 60.
Sem as diabólicas elites de Lasch, pergunta Rorty, em que pé estariam, por exemplo, as lutas pelos direitos civis das minorias, a campanha contra a guerra do Vietnã etc? Lasch, ironiza Rorty, "é melhor lamentando perdas do que fazendo o balanço de perdas e ganhos; e imaginando desastres do que propondo saídas". Na hora das soluções, o analista radical fica em silêncio. É fácil ser romanticamente revolucionário, quando não se tem o ônus de responsabilidades concretas.
Segundo, Lasch aspiraria por uma ordem político-econômica feita do improvável e não do possível. Em vez de experimentar, limita-se a desconstruir, deixando no lugar, à maneira de Heidegger, "desespero, e não consolo". Dividir o mundo entre massas e elites, condenando ambas em nome de uma utopia proletária nunca vista, em nada resolve os problemas que enfrentamos.
Melhor seria seguir os conselhos de Harold Bloom e Gore Vidal, que se contentam com "um razoável governo democrático" e com a chance de realizar nossos anseios privados na terra e não no paraíso pós-revolução.
Rorty é um dos maiores pensadores da atualidade. Seu compromisso com os ideais humanitários das democracias liberais é, a meu ver, inequívoco. Mas "nobody is perfect", dizia Billy Wilder. A miopia diagnosticada em Lasch às vezes o atinge sem que ele se dê conta.
Ao contrário do ditado, guarda o bebê e a água suja, e ninguém de bom senso gostaria de ressuscitar o "american way of life" antes do Vietnã. Neste aspecto, Rorty tem razão. Mas até aí só temos meia história. O fundamental do trabalho é a constatação de que as novas elites são indiferentes ao bem comum. Rorty insiste em desconhecer isto. Quando se trata de analisar a economia capitalista, passa rápido ou faz vista grossa.
É ou não escandaloso notar que 20% dos norte-americanos, hoje, concentram 50% da riqueza do país mais rico do mundo? Isto reflete os ideais de Jefferson, Bloom ou outros autores tão citados por Rorty? Do mesmo modo, quando defende a sociedade de especialistas, o que tem Rorty a dizer sobre os parasitas especuladores do mundo inteiro, que vêm acumulando fortunas gigantescas às custas da miséria de milhões de pessoas e centenas de países pobres no planeta? Isto é experimento eticamente pragmático ou canalhice, violência e crime lesa-democracia, quando não lesa-humanidade!
Tem mais. Como bem sintetizou David Hall, em sua narrativa pragmática, Rorty elege o "ironista liberal", o "poeta forte" e o "revolucionário utópico" como ideais de conduta ética do sujeito face às contingências do mundo. Rortyanamente, pergunto, o que têm a ver estes heróis com os comportamentos e os jargões politicamente corretos dos movimentos de minorias que ele costuma dar como exemplo da responsabilidade social das elites?
Basta assistir "Oleanna", de David Mamet, ou ler a reportagem de Eliana e Contardo Calligaris, publicada recentemente neste Mais!, para ver a distância que separa aquelas condutas morais robotizadas dos ideais wittgensteinianos e nietzscheanos que alimentaram o pensamento de Rorty. Em que tais estereótipos humanos distinguem-se dos rebanhos de "idiotas dominantes", para usar a expressão desabusada de Feyerabend? Como ver progresso moral em indivíduos que repetem bovinamente que "são aquilo que seu grupo é" e que só abrem a boca para exprimir "as necessidades, anseios e aspirações do grupo"?
O que de poético ou heróico existe no empacotamento de indivíduos em rótulos de "feministas", "velhos", "negros", "homossexuais", "sadomasoquistas" etc? Onde encontrar, nesta obsessão pelas pequenas diferenças narcísicas, o mundo de todos e para todos, imaginado pelos pais do "poema americano", que Rorty tanto admira? Neste sentido, Lasch vai além. Não se sente responsável pelo conserto das mazelas do que não criou e que sempre condenou.
É difícil ir de encontro a quem admiramos e devemos muito de nossas crenças morais e intelectuais. Mas esta é uma das consequências do pragmatismo. Nenhum vocabulário é imortal. Tudo pode ser reescrito à luz dos princípios éticos que aceitamos. Isto aprendi com o grande pensador Richard Rorty. Seu brinde, lamento, veio fora de tempo e lugar. Foi feito antes da catástrofe da tequila.

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