São Paulo, domingo, 12 de março de 1995
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

O lado escuro de Fulbright

CARLOS EDUARDO LINS DA SILVA
DE WASHINGTON

William Fulbright morreu no mês passado em Washington, aos 89 anos. Ele esteve entre os poucos políticos norte-americanos além dos presidentes com nome reconhecido em todo o mundo.
Nos anos 60 e 70, foi um herói dos pacifistas por causa de sua firme, no começo quase solitária, oposição ao envolvimento militar dos EUA no Vietnã.
O programa de bolsas de estudos internacionais criado por ele em 1946 beneficiou cerca de 200 mil pessoas em 130 países, 65 mil deles dos EUA.
Muitos bolsistas da Fulbright, como eu próprio, consideram o período de suas bolsas como um dos mais marcantes de suas vidas.
Entre os "fulbrightianos" estão o presidente do Brasil, Fernando Henrique Cardoso, o secretário-geral da ONU, Boutros Boutros-Ghali, o primeiro-ministro da Grécia, Andreas Papandreou, o escritor John Updike, o compositor Aaron Copland, o economista Milton Friedman.
Fulbright também foi o autor da resolução do Congresso dos EUA que em 1943 deu partida ao processo de criação da ONU e da lei que instituiu em Washington um centro de artes que veio a se chamar Kennedy Center.
Internacionalista, intelectual, autor de vários livros, Fulbright desfrutou sempre do melhor conceito possível para um político.
Mas Fulbright tinha uma faceta pouco citada, convenientemente esquecida por seus muitos amigos jornalistas.
Filho de um banqueiro dono de um dos mais importantes jornais do miserável Estado de Arkansas (o mesmo do presidente Clinton) do começo do século, Fulbright era um elitista convicto.
Nos 32 anos em que serviu no Congresso dos EUA, ele sempre votou contra os projetos de lei que tentavam garantir igualdade de direitos aos negros.
Confrontado pela Folha com esse fato em entrevista há três anos, respondeu: "Para se poder ser um estadista, é preciso antes ser eleito".
Essa linha de raciocínio foi usada por quase todos os que fizeram elogios fúnebres ao senador e se incomodaram com a contradição essencial de sua vida pública: o voto segregacionista foi o preço a ser pago para ele poder atuar na arena política.
Trata-se do surrado argumento das necessidades da "realpolitik". O princípio é adotado por milhares de políticos em várias épocas. Por exemplo, ele hoje deve ser o escudo dos petistas que integram o governo.
O caso de Fulbright é interessante para se analisar o princípio. Será que ele realmente precisava votar de maneira tão consistente contra os direitos civis dos negros para poder fazer o trabalho que fez? Coragem para se opor à vontade do eleitor não lhe faltava. Em 1954, ele foi o único dos cem senadores a votar contra a criação da comissão de atividades anti-americanas, liderada por Joseph McCarthy, que deu partida à caça às "bruxas comunistas" no país durante anos.
A maioria absoluta dos norte-americanos, ainda mais em Arkansas, apoiava McCarthy. Fulbright não teve problemas em confrontá-los, quando teria sido mais conveniente do ponto de vista eleitoral agir diferente.
A maioria dos eleitores de Arkansas também apoiava a intervenção dos EUA no Vietnã, mas Fulbright se opôs a ela quase desde o princípio.
Outro ponto com frequência omitido na sua biografia é que ele foi um dos patrocinadores da resolução pela qual o Congresso autorizou o presidente Johnson a bombardear o Vietnã depois do incidente do golfo de Tonkin em 64.
Na época, ele se justificou com o argumento de que havia se deixado convencer por Johnson de que a guerra duraria menos com os bombardeios.
Quando votava contra os direitos dos negros, Fulbright argumentava que não se podia acabar com a segregação por decreto, que ela só teria fim quando brancos e negros fossem melhor educados e que ele preferia investir em educação a tentar impor a igualdade de direitos à força.
Ele parece ter adotado a teoria dos "meios justificando os fins" só muito mais tarde, quando já era idolatrado como um símbolo da paz e o seu currículo segregacionista era uma espécie de mancha injustificável.
O caso Fulbright pode indicar que com muita frequência essa tese é usada como uma escusa para simples erros de avaliação política ou ações tomadas com convicção e depois consideradas condenáveis.
Se acreditasse mesmo que a segregação racial era um erro a ser combatido, Fulbright poderia ter sido mais discreto em sua oposição às leis pelos direitos civis e talvez tivesse sobrevivido na política.
Outros senadores de Estados tão racistas quanto o Arkansas agiram diferente de Fulbright e nem por isso perderam seus mandatos antes dele. Por exemplo, Albert Gore, pai do atual vice-presidente, que representou o Tennessee no Congresso de 1939 a 1971.
Mais ainda: se não tivesse se oposto de maneira tão ostensiva aos direitos civis dos negros, ele talvez tivesse obtido o que mais desejou na vida pública, o cargo de secretário de Estado.
É público que o presidente Kennedy o queria como seu secretário de Estado, mas não o indicou porque isso iria ofender a comunidade negra.
Johnson sempre se referiu a ele como o "seu" secretário de Estado.
Talvez tenha sido a esperança de que Johnson, eleito em 1964 e com mandato para se livrar do ministério herdado de Kennedy, o nomeasse para o Departamento de Estado, que tenha feito Fulbright apoiar a resolução do golfo de Tonkin. Mas Johnson, o presidente que assinou a lei dos direitos civis, não poderia colocar um ardente opositor dela no seu ministério.
Fulbright, como quase todos os seres humanos, não gostava de admitir suas contradições e gostaria de ter tido uma biografia coerente e "limpa".
Os santos são poucos e é muito difícil encontrá-los entre políticos. Fulbright não foi exceção.
Nada vai mudar o grande bem que ele trouxe ao mundo, em especial com as bolsas Fulbright, que engrandeceram a vida de 200 mil pessoas com um custo para o Tesouro dos EUA equivalente às despesas de um dia e meio do Pentágono, como ele gostava de argumentar.
Mas também nada vai mudar o fato de que Fulbright era um elitista que se enganou em relação à conveniência e à oportunidade de se lutar contra a segregação racial nos anos 50 e 60.
O argumento da "realpolitik" no seu caso, como na maioria dos outros, foi apenas uma escusa capenga para justificar erros.

Texto Anterior: Editora Minuit publica peça inédita de Beckett; Juzo Itami filma livro do Nobel Kenzaburo Oe; Laura Esquivel anuncia novo livro e dois roteiros
Próximo Texto: A DISCIPLINA DA LIBERDADE
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.