São Paulo, domingo, 12 de março de 1995
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A DISCIPLINA DA LIBERDADE

ARTHUR NESTROVSKI
ENVIADO ESPECIAL A PARIS

Pierre Boulez é o mais importante músico francês da atualidade e um dos maiores compositores da segunda metade do século. Boulez está para a música como Lacan para a psicanálise, ou Lévi-Strauss para a antropologia: ele é a figura central em torno à qual vamos organizar nossa percepção dos outros.
Para homenageá-lo, ao completar 70 anos (no próximo dia 26), o Mais! faz uma edição especial, incluindo a entrevista exclusiva concedida pelo compositor.
As composições de Boulez já deixaram uma marca indelével na história da música. Obras como "Le Marteau Sans MaŒtre" (1957) e "Plis Selon Plis" (1962) são marcos de nossa época, que nos ensinam a ouvir o mundo com outros ouvidos e nos fazem reencontrar também, de outra maneira, a música do passado.
Mais recentemente, com "Répons" (1984), para seis solistas, orquestra e instrumental computadorizado, Boulez parece ter escrito uma das poucas obras definitivas da década. Surpreendentemente, talvez, para uma composição contemporânea com 45 minutos de duração, mas não quando se pensa em sua exuberante beleza sonora, "Répons" é também um sucesso de público. No concerto do dia seguinte à entrevista que abre o Mais! desta semana, o compositor foi ovacionado por quase dez minutos por um público de mais de mil pessoas.
Além de compositor, Boulez é também um dos maiores regentes em atividade. Já foi titular da Filarmônica de Nova York e da Orquestra da BBC de Londres, regeu Wagner no Festival de Bayreuth e é regente convidado de várias grandes orquestras da Europa e Estados Unidos. Foi Boulez, ainda, quem concebeu e dirigiu o IRCAM —o Instituto de Pesquisa e Coordenação Acústica e Musical, associado ao Centro Georges Pompidou, em Paris, um dos mais renomados laboratórios de composição desde seu nascimento em 1977. Professor no Collège de France, ele é o autor de quatro livros e inúmeros ensaios, traduzidos para muitas línguas, além de volumes de correspondência e entrevistas. A editora Perspectiva já publicou três livros seus no Brasil.
Num belo artigo, publicado postumamente em 1982, e até hoje inédito em português, Michel Foucault homenageia as "batalhas do formal" empreendidas por Boulez. Lorenzo Mammí analisa os "Apontamentos de Aprendiz" (coletânea de ensaios de 1966, que acaba de sair no Brasil) e descreve a receita de rigor com otimismo da geração dos serialistas. E Décio Pignatari relembra 40 anos de encontros com Boulez, registrando uma conversa antológica entre os dois em Paris.
"Meu objetivo sempre foi o de promover, em qualquer área, a idéias de hoje." Estas palavras, escritas por Boulez em 1972, servem bem de motivo para suas muitas atividades. Mesmo quem nunca ouviu sua música está, hoje, afetado por ela. Boulez é uma das personalidades intelectuais e criativas mais fortes da sua geração e os efeitos de sua obra se fazem sentir, indiretamente, em áreas que vão da literatura (nos estudos de Mallarmé, Proust e Joyce, na ficção de Calvino ou Perec) à filosofia (Adorno, Deleuze, Derrida), ao cinema (Godard, Resnais) e à história (Foucault).
Como regente, como professor, como ensaísta e acima de tudo como compositor, Boulez é um dos grandes inventores da nossa época, o criador de toda uma forma de ver o mundo, que nós, educados espontaneamente, esquecemos que aprendemos com ele. Enquanto isto, aos 70 anos, ele permanece à nossa frente, nas asas de uma "paixão pelo desconhecido", como ele mesmo diz, atravessando os vazios entre "a idéia e a realização". É lá que se revela o que ele chama de seu "mistério profundo", e é lá que nós, simples ouvintes, vamos assistir, em retrospecto, à criação do nosso tempo, e de nós mesmos.

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