São Paulo, domingo, 12 de março de 1995
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A DISCIPLINA DA LIBERDADE

ARTHUR NESTROVSKI

(continuação)
"O pós-moderno foi para mim uma espécie de fim das utopias"
Outra coisa que se pode explorar é o espaço. Numa outra peça minha ("Dialogue de l'Ombre Double", 1985) um clarinetista fica no palco, mas o som gravado (ao vivo, durante a performance) se desloca por todos os lados. Mesmo isto, que ainda é bastante simples, já dá à música uma nova possibilidade de projeção no espaço, impossível de realizar só com instrumentos.
Um instrumentista pode até se mover no palco, mas então já estamos no domínio do teatro. Muitas experiências foram feitas neste sentido, mas em geral não se revelaram muito convincentes; os músicos não são, em geral, muito bons atores.
Folha - O que o sr. vê como seu gesto mais característico enquanto compositor?
Boulez - Há uma coisa que eu sempre tento fazer: combinar a disciplina da composição com uma certa liberdade de escolha. Isto é, combinar a flexibilidade da invenção com um certo nível de controle. E atingir o equilíbrio certo entre liberdade de decisão e controle do que há para ser decidido. Sempre estive à procura disto.
E na verdade não é nada de novo. Todos os compositores que foram importantes para mim sempre estiveram em busca do mesmo equilíbrio.
Folha - Revendo, hoje, sua longa lista de composições, o que o sr. ainda gostaria de tentar?
Boulez - Tanta coisa!
Folha - Que fim levou sua ópera (anunciada como um projeto de adaptação de uma peça de Genet)? Que fim levou Genet?
Boulez - Genet está morto.
Folha - E o sr. desistiu da idéia?
Boulez - Não, não desisti, mas quero encontrar alguém —talvez ainda encontre— com quem eu possa de fato colaborar. Estive mesmo muito tentado a adaptar uma peça de Genet ("Les Paravents"), mas gostaria de encontrar alguém com quem pudesse colaborar desde os primeiros passos.
Tenho muitas idéias sobre o teatro e uma boa dose de experiência. Já trabalhava com teatro desde muito jovem, como diretor musical da companhia de Jean-Louis Barrault. Conheço bem o teatro falado e sei o que se pode fazer com atores. Também trabalhei em produções de ópera, com cenógrafos da qualidade de Peter Stein e Patrice Chéreau. Sei, portanto, do que eles são capazes num palco e gostaria, agora, de passar a eles minhas próprias idéias sobre a relação entre a música e o teatro, e entre a música e a tecnologia.
Isto inclui o uso de tecnologia visual. Há muitos elementos da nova tecnologia que podem ser usados no palco e não há razão para que fiquem restritos aos shows de música pop. Os cantores pop se valem disto o tempo todo, mas o pessoal do teatro não ousa nem chegar perto. E não é verdade que não se pode usar esta tecnologia sem ser de uma forma trivial.
É por isto que gostaria de chegar à situação ideal de colaborar, desde o princípio, com um escritor e um cenógrafo. Desde o princípio, mesmo, não só no final.
Folha - Deixe eu lhe fazer uma pergunta mais prosaica. Eu me lembro de ver —acho que foi no livro de Joan Peyser ("Boulez - The Man, The Myth")...
Boulez - É um livro muito ruim.
Folha - Eu sei, eu sei —mas não estou falando do texto! O que eu me lembro é de uma fotografia da sua agenda, na época em que o sr. era regente da Filarmônica de Nova York. Naquela época (anos 70) o sr. tinha semanas de compromissos agendados hora a hora e não dormia mais do que quatro horas por noite. A vida acalmou?
Boulez - Quando tenho muito trabalho, posso dormir menos que isto. Ainda hoje. Mas em outros períodos, naturalmente eu durmo mais!
Folha - O sr. está em ótima forma.
Boulez - Por enquanto.
Folha - Como o sr. se prepara para um concerto? Não digo de sua própria música, mas de outras peças. O sr. analisa a partitura, lê estudos de musicologia, ou estas coisas se confundem de uma forma mais intuitiva?
Boulez - É claro que a gente se aproxima intuitivamente de uma peça. Mas uma vez passado o primeiro momento, é preciso saber como essa música está organizada. Se você está —como eu estive muitas vezes, quando era mais jovem— envolvido com a regência de uma sinfonia de Haydn, não vai levar muito tempo para perceber como foi escrita. Mesmo nas últimas sinfonias, onde o contraponto é mais cerrado, tudo ainda é muito fácil de entender.
Mas se, por outro lado, você tem de reger uma ópera de Wagner, não é possível simplesmente sair nadando neste oceano. Você vai ter de organizar, de um jeito ou de outro, o seu nado. Nesta hora, é imprescindível estudar a partitura; não só aprender a bater os compassos ou memorizar o texto, mas compreender a forma.
No início, é claro, isto resulta numa interpretação, eu não diria artificial, mas daquele tipo que nos obriga a pensar a cada instante sobre o que se está fazendo. Mas uma vez que este conhecimento da partitura foi absorvido, a expressão se torna espontânea.
Na minha opinião, a espontaneidade pura, em muitos casos, não quer dizer nada. Num momento você está inspirado, no outro não. Sua inspiração, ou falta da mesma, não correspondem, necessariamente, à partitura. A continuidade se perde. A interpretação se transforma numa sucessão de picos, com vazios no meio.
Folha - O sr. está regendo muitos concertos?
Boulez - Demais, demais. É o ano do aniversário, eu vou fazer 70 anos, e tenho muitos convites para reger, em várias cidades. Vai ser assim até junho. Depois, vou passar dois meses em Amsterdã, regendo "Moses und Aron" (ópera de Schoenberg), com encenação de Peter Stein. É um dos projetos, aliás, que deveria ter acontecido na Ópera da Bastilha, mas acabou transferido para a Holanda.
Folha - E o Brasil— o sr. já esteve no Brasil, não esteve?
Boulez - Duas vezes, há muito, muito tempo, quando eu ainda estava com a companhia de Jean-Louis Barrault. Foi antes de você nascer: em 1950 e 1954. O Brasil, naquela época, era um país muito rico e, para mim, especialmente numa primeira visita, extremamente exótico. Muito diferente de tudo o que eu já vira. Gostaria de visitá-lo de novo. E gostaria especialmente de ver as esculturas de Aleijadinho. Queria ter visto em 1954 e acabei não tendo a chance.
Folha - Já que estamos falando de lugares "exóticos", eu gostaria de lhe fazer uma pergunta sobre o Oriente. Em "Points de Repères" o sr. escreve que, no estudo da cultura oriental, encontrou "uma ética da existência e não uma estética do prazer. A influência é sobre o meu espírito e não sobre a minha obra".
Boulez - Sem dúvida, a música da Ásia —de outras partes do mundo também, mas especialmente da Ásia— da Índia, China, Japão, Bali e Tibete —dos monges do Tibete— me impressionou muito. E essas culturas têm noções muito diferentes de música. A idéia de obra de arte é diferente. Grande parte dessas músicas são parte de um ritual.
No caso da Índia, mesmo se não for parte diretamente de um ritual religioso, a música ainda guarda uma ligação com ele. Cada "raga" só pode ser tocada numa determinada hora do dia etc. E isto significa que a música está ligada a uma verdadeira moral de vida.
A idéia de escutar música é, portanto, muito diferente. Já na França, se você entra, por exemplo, numa igreja antiga —e temos um bom número delas por aqui— você não entra mais, de forma alguma, como se entrava na Idade Média. Para uma pessoa da Idade Média, essa igreja era, de certo, uma obra de arte, mas concebida com um propósito religioso. E agora, se você não é religioso, pode apreciar essa mesma igreja puramente como uma obra de arte. Ou seja, nós podemos apreciar e respeitar esteticamente obras que foram criadas com um propósito inteiramente diverso.
Também é verdade que certas obras de arte acabam sendo respeitadas de forma religiosa. Para muita gente, um Van Gogh é uma religião.
Folha - Só mais duas perguntas. Em seus ensaios, como em sua música, pode-se perceber certos elementos que antecipam, de alguma maneira, aquilo que, anos mais tarde, na obra de Derrida e Foucault, entre outros, seria descrito como "o fim da metafísica". Estou me referindo à sua crítica da autenticidade.
Se estou correto, uma idéia que reaparece nos seus escritos é a defesa da interpretação "falsa" —baseada em princípios particulares, contrários à norma, mas produtivos para o intérprete— como única forma de interpretação. A interpretação falsa revela que o original já era falso também. Neste contexto, como o sr. vê o movimento da interpretação "autêntica"?
Boulez - Naturalmente eu tenho consciência da importância de se executar cada peça musical de acordo com uma certa idéia de correção sonora. Mas daí a descrever este som como "autêntico" é um grande exagero. Porque nada é, ou pode ser autêntico.
Para início de conversa, você está fadado a escutar a música antiga à distância de hoje, e afetado por tudo o que se passou neste intervalo. Mesmo um especialista em música barroca já ouviu Debussy e Stravinsky. Só o que o especialista pode fazer é tentar reconstituir alguma coisa —o que já é um sinal de distância— e reconstituir principalmente a partir de tratados escritos.
Mas há certas coisas que não se podem reconstituir. A idéia de tempo, por exemplo; ou de velocidade. Nunca saberemos a velocidade em que se executava esta música. Nunca saberemos que idéia se tinha da música em grupo, seja de câmara ou orquestral. Nunca saberemos até que ponto os músicos da época eram sensíveis a questões de afinação. E o dedilhado? Estas são coisas que me parecem simplesmente impossíveis de reconstituir. Pode-se almejar, no máximo, a uma reconstituição parcial —e concordo, aliás, que o esforço vale a pena.
Também concordo que se deva dedicar uma atenção especial à natureza do som. Mas a música, afinal, não é apenas som. É uma questão de espírito, também, como já dizia Beethoven. "Que me importa o seu maldito violino?", ele perguntou a um músico que reclamava da dificuldade para executar um dos quartetos. Um compositor não está limitado às capacidades instrumentais do seu dia.
Isto é verdade especialmente no que concerne aos compositores do século passado, cuja imaginação parece sempre se projetar à frente do seu tempo. Liszt estava continuamente experimentando com novos pianos. Wagner inventava instrumentos. Berlioz alterou a instrumentação de suas próprias peças, quando voltou a regê-las anos mais tarde.
E agora devemos supostamente reconstituir o que foi executado, digamos, em 1837 —por oposição ao que foi feito em 1840? Não que isto seja impossível, mas não vamos dizer que é "autêntico", ou sugerir que era assim que o compositor queria. O compositor simplesmente aceitou certas condições, num determinado ano. Mais tarde, pode não ter aceito.
Folha - O sr. mencionou Beethoven e eu gostaria de lhe perguntar sobre a nossa relação de dependência —ou independência— em relação a ele. A meu ver, todo o longo período desde Beethoven até nossos dias é precisamente isto: o período beethoveniano.
A idéia da composição como um processo, a "forma orgânica", a música instrumental, sem palavras, como forma predominante, a noção de música "pura" como um discurso inteligível em si, a ênfase sobre a criação individual —tudo isto caracteriza, até hoje, a nossa música, e me parece um legado de Beethoven. É uma noção essencialmente irônica da composição e me parece um equivalente musical do legado de Kant. Mas será que estou enganado? Será que não fomos capazes de inventar uma música não-irônica e não-beethoveniana? Será que nossa música não é mais, mesmo, do que outra volta no parafuso das ironias de Beethoven?
Boulez - Existe uma diferença. As idéias de Beethoven sobre a música, sua filosofia musical, estavam intimamente ligadas às idéias do século 18 sobre a utopia. Rousseau: não é uma ligação direta, mas a utopia de Rousseau era certamente parte do pensamento de Beethoven, que se deixa entrever na idéia de progresso.
Essa idéia de progresso na música chegaria a um extremo cem anos mais tarde, com Schoenberg. Hoje, pelo contrário, nós temos algo que eu não chamaria de ceticismo, mas é a percepção de que não é mais suficiente pensar na história como uma linha. A idéia de utopia desapareceu da composição, bem como da sociedade.
Porque, afinal, todas as utopias acabaram se transformando em coisas horrendas, no curso deste século. A utopia nacionalista se degradou em nazismo e a utopia comunista, inicialmente mais nobre, se degradou em ditadura. O resultado é que as utopias desapareceram do nosso mundo. A cada vez que uma utopia foi implementada —no leste da Europa, em Cuba, em qualquer lugar— o resultado foi a ditadura.
Da mesma maneira, esta idéia de progresso infinito, de uma utopia que vai nos levar a todos para algum lugar, parece enterrada. E é esta a questão central do que se chama, muitas vezes equivocadamente, de pós-modernismo. O pós-modernismo, para mim, foi algo pensado, a princípio e com muita inteligência, como uma espécie de fim das utopias. E o difícil é encontrar um meio de se conquistar esse novo território, sem se deixar vencer pelo ceticismo.
Ao mesmo tempo, não se pode deixar de notar o crescimento, em muitas partes do mundo, do fanatismo religioso —e as utopias religiosas não são melhores, talvez sejam até piores do que as sociais. Numa utopia religiosa, a cultura deixa de ter valor. É o que se vê hoje na Argélia, onde os representantes da cultura secular estão sendo gradual e sistematicamente assassinados.
São fatos que precisam ser confrontados. No final das contas, nós estamos apenas tentando sobreviver num ambiente que talvez não seja muito adequado à sobrevivência. A Argélia fica só do outro lado do mar. Quem pode prever a situação daqui a 50 anos? De um lado, excesso de população e pobreza; de outro, a população diminuindo e a riqueza aumentando. E os políticos não têm demonstrado muita imaginação para lidar com o problema. Eles estão cansados; e estão velhos demais.
Folha - Mas a esta altura, pelo menos, nós já teremos sua ópera, o que é algum consolo.
Boulez - (Sorri e ergue as mãos).
Folha - Muito obrigado pela entrevista —e feliz aniversário.

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