São Paulo, domingo, 12 de março de 1995
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A DISCIPLINA DA LIBERDADE

ARTHUR NESTROVSKI
DO ENVIADO ESPECIAL A PARIS

Inaugurada em janeiro, junto ao Parque de la Villete, na moderna zona noroeste de Paris, a Cité de la Musique é um símbolo da nova vitalidade cultural francesa.
Combinando salas de aula, museu, discoteca e galeria de CD-ROM com uma espetacular sala de concertos, a Cité já se tornou o centro da educação musical em Paris. É lá, também, que ensaia e se apresenta o Ensemble InterContemporain, o mais importante conjunto de música contemporânea da França, dirigido por Pierre Boulez desde sua fundação, em 1977. E foi numa das salas da Cité, depois de um ensaio com o Ensemble, que Pierre Boulez falou à Folha, numa tarde de fevereiro.
Muitos, com certeza, já passaram pelo terror antecipado de entrevistar o que antigamente se chamava, em francês, de "um génie". Muito poucos terão sentido essa apreensão se transformar quase imediatamente em bem-estar, na presença do seu "génie".
Cordial e bem-humorado, Boulez não demonstra nenhum sinal de cansaço depois de um ensaio de três horas. Na entrevista, como no ensaio, ele aparenta aquela qualidade rara de um homem perfeitamente integrado em si mesmo, ou que soube tirar de si tudo o que podia. O resultado, no trato pessoal, não é, como poderia ser, a arrogância; mas, pelo contrário, a paciência e a generosidade. Conversar com ele é uma educação, e um prazer. (Arthur Nestrovski)

Folha - Podemos começar lembrando um de seus textos. Em sua palestra inaugural no Collège de France, em 1976, o sr. dizia que "a análise da linguagem musical permanece incipiente" e também que um esforço deveria ser feito "para que a música venha se integrar à consciência contemporânea, aos esforços globais do nosso tempo". Talvez mais do que qualquer outro, o sr. mesmo tenha dirigido seus esforços nessa direção. Vinte anos depois, o que mudou?
Pierre Boulez - Não muita coisa; mas algumas mudanças são importantes. Temos hoje estudiosos, como um Jean-Jacques Nattiez (de Montreal) ou Celestin Deliège (de Bruxelas), que vêm desenvolvendo uma outra espécie de análise musical. Mas a musicologia ainda está muito presa a uma visão histórica das coisas.
Folha - Mas, por outro lado, se nós pensarmos nos trabalhos bem recentes da musicologia —não só Nattiez e Deliège, mas também americanos como Susan McClary e Richard Leppert— não seria justo dizer que, ao menos entre as gerações mais jovens, são justamente eles, e não os compositores, que vêm promovendo o diálogo entre a música e outras áreas da cultura? Essa nova musicologia não estaria hoje para a composição mais ou menos como a teoria literária para a literatura há 20 anos?
Boulez - Como você sabe, nem todo compositor tem talento para se expressar com palavras. Mas os jovens compositores estão certamente pensando sobre o assunto. Aqui no IRCAM (Instituto de Pesquisa e Coordenação Acústica e Musical), nós estimulamos a discussão verbal dos projetos e promovemos, também, um contato direto entre compositores, conjugando análise das obras com ensaios sobre o pensamento de cada um. A maior parte dos autores, como dos compositores, ainda não completou 40 anos, e os resultados são entusiasmantes.
É claro que este é um outro momento, muito diferente daquele que viveu a minha geração, e diferente de tudo o que fizemos nos festivais de Darmstadt (onde ensinaram, entre outros, Stockhausen, Luigi Nono, Bruno Maderna e Boulez). Não faria sentido, agora, tentar repetir o que nós vivemos. Mas é importante notar que, num outro contexto e com outras perspectivas, há sempre pessoas buscando outras formas de compor e de pensar.
Folha - O sr. ainda dá aulas?
Boulez - Aulas, não, mas ainda estou ligado ao Collège de France —é o meu último ano. Nas palestras que estou dando, e que vão até abril, venho trabalhando a noção da obra como fragmento. Ou melhor, a relação entre fragmento e obra, que é muito interessante. Quando estiver tudo pronto, a idéia é reunir estas palestras para publicação, com as outras dos últimos quatro ou cinco anos.
Folha - Gostaria de lhe perguntar sobre a Cité de la Musique. Que espécie de escola é esta?
Boulez - A Cité de la Musique foi concebida, acima de tudo, para criar pontes entre a pedagogia e a atividade profissional da música. Em segundo lugar, a Cité é um espaço aberto tanto para o músico especializado quanto para os que não têm absolutamente nenhum conhecimento musical. Queremos atrair outra audiência, além do público cativo. E não estou só me referindo à música contemporânea, mas igualmente à música do passado.
Os programas de concerto, por exemplo, procuram combinar as duas coisas, como é o caso do concerto de amanhã —uma peça minha, "Répons", contrastada com as "Responsoria", do compositor renascentista italiano Gesualdo.
Folha - A relação com Gesualdo já era algo de pensado durante a composição de "Répons"?
Boulez - Não Gesualdo, especificamente, mas com certeza a forma antiga do responsório, que remonta ao canto gregoriano. Gosto de pegar uma forma histórica e transformá-la inteiramente. É claro que não faria sentido reproduzir o modelo do responsório; mas a idéia de uma alteração entre solistas e orquestra me atraiu. E o responsório é mais interessante, mais flexível que o "concerto grosso" barroco —que, além disso, tem conotações muito fortes e bem definidas para nós. Já o responsório, hoje, não tem praticamente conotação alguma, exceto uma vaga sugestão eclesiástica, à distância. Com isto, não se cria automaticamente uma barreira entre a obra e o ouvinte. O mesmo se dá com outras formas, como "antífona"...
Folha - Ou "tropo", ou "sequência"...
Boulez - Exatamente. Sempre uso palavras assim, que têm, certamente, suas ligações com alguma forma, mas não uma que ainda esteja muito presente em nossa memória.
Folha - Mudando de assunto, para quem chega à França é impressionante a vitalidade da renovação cultural. Só nos últimos anos, foram criados grandes projetos, como a Cité de la Musique, a Ópera da Bastilha, a nova ala do Louvre e do Museu d'Orsay, mais a nova Biblioteca Nacional, em construção. Como se explica esse fenômeno?
Boulez - Esse tipo de transformação tem a ver realmente com a presidência do país. O primeiro homem a impulsionar novos projetos foi Pompidou. Foi ele, é claro, quem criou o Centro Pompidou, uma obra muito audaciosa na época. Seu objetivo era tornar a arte contemporânea acessível a todos. Não só aos que já têm contato com ela, mas também a todos aqueles que estão simplesmente à procura de alguma entrada, alguma nova via da percepção. Pompidou foi o primeiro presidente a se preocupar, de fato, com a cultura.
Um homem como De Gaulle não chegava a desprezá-la, mas a cultura, para ele, era algo de secundário, pouco mais do que uma noite na ópera recebendo chefes de estado. Malraux (que foi ministro da Cultura de De Gaulle) não fez praticamente nada, além de limpar fachadas. O primeiro a tomar decisões importantes foi mesmo Pompidou.
Giscard d'Estaing não fez muita coisa. Começou, apenas, as obras do Museu d'Orsay. Mas este era um projeto já planejado e aprovado durante o governo Pompidou. Fora isso, ele não fez nada.
Coube a Mitterrand, então, imitar, ou melhor, dar continuidade ao exemplo de Pompidou. Desde o princípio, ele fez questão de vincular seu programa de governo à realização de monumentos e instituições da cultura. E eu acredito, honestamente, que, no fundo, o que há de sobreviver desses 14 anos é exatamente isto.
Outros projetos não foram tão bem-sucedidos. Qualquer um pode ver, hoje, o declínio político de Mitterrand. Ainda me lembro do enorme entusiasmo com que foi recebida a sua eleição, em 1981. De lá para cá, o entusiasmo foi gradualmente arrefecendo e hoje o que se percebe é um sentimento de cansaço, tingido ainda por uma sucessão de escândalos políticos e financeiros. É um fim triste.
Mas, afinal, Luís 14 também não acabou muito bem! Tudo somado, o que vai ficar são os projetos culturais.
O Museu d'Orsay foi concluído e é um grande sucesso. O Louvre foi inteiramente transformado (com a nova pirâmide de vidro) e hoje atrai o dobro de visitantes. A Ópera é uma outra história, não tão bem-sucedida. É um desses casos onde Mitterrand acabou nomeando para cargos da maior importância indivíduos absolutamente incompetentes, mas que aconteciam de ser seus amigos.
E para um cargo desses não é o bastante ser amigo do presidente. Ser um bom administrador dos negócios de Yves Saint-Laurent não qualifica ninguém para dirigir uma grande casa de ópera. E o que se viu foi uma sucessão de desastres.
Folha - Agora o regente (Myung-Whun Chung) foi demitido.
Boulez - Foi demitido, o que é uma pena, porque era talvez o único que estava fazendo alguma coisa de positivo por lá.
Folha - Num dos seus ensaios, o sr. comenta que a história da civilização antiga pode ser deduzida a partir da história dos utensílios de barro e que, da mesma forma, a história da nossa civilização poderia ser deduzida da história dos instrumentos.
E os instrumentos estão sempre mudando. Por mais que se goste de um piano ou violino, eles vão acabar virando relíquias, como o clavicórdio. Qual a importância do computador para a música de hoje? O que se deduz musicalmente das contribuições da informática, e mais especificamente do emprego dos computadores em "Répons"?
Boulez - Você precisa ter sempre em mente o que a máquina pode fazer para você e não o que você pode fazer por ela. Antes de mais nada, nos cabe experimentar com essas máquinas, para descobrir do que são capazes.
Para mim, o uso da tecnologia informatizada representa, antes de mais nada, uma possibilidade de expansão dos instrumentos tradicionais. O computador pode alterar completamente o som de um instrumento. Este é o primeiro fator. Mas ele nos permite, também, uma grande expansão do ritmo.
Como você acabou de escutar, em "Répons", o final das frases dos solistas é alterado não só em termos de som, mas também dos padrões rítmicos. E quando os solistas ou a orquestra continua tocando contra esses novos padrões projetados nos alto-falantes, cria-se toda uma gama de superposições. O padrão original se perde nas combinações e o resultado é muito interessante.

Continua à pág. 6-5

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