São Paulo, domingo, 12 de março de 1995
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Jogo de espelhos

O que é seguir uma regra? A resposta parece óbvia, mas já incomodou alguns dos mais notáveis filósofos. Afinal, desde criança aprende-se a seguir instruções. Mas é ao mesmo tempo evidente que apenas os animais estão sujeitos cegamente a regras naturais. Em sociedade, os indivíduos nem sempre se dobram cegamente. É da essência da liberdade e da criatividade reinventar, desconfiar ou negar as regras.
As regras do jogo econômico são estabelecidas em boa medida a partir de modelos, teorias e observação, como em toda ciência normal. Mas na realidade as surpresas são inevitáveis porque nem sempre é possível ou desejável "seguir as regras" —principalmente quando se trata de transição entre sistemas, quando está em jogo a destruição e a criação de novas regras. Nesses momentos críticos, em que ninguém é dono da verdade, tudo repousa na construção da confiança e no cultivo da legitimidade.
Pois foram precisamente esses elementos básicos de filosofia política que o governo e especialmente o Banco Central puseram a perder na semana passada. É fato que há desordem na economia internacional. É inegável que vizinhos como Argentina ou México passam por adversidades até certo ponto contagiantes. Mas o triste espetáculo de desgoverno cambial provocou arranhões na confiança que se nutria pelas autoridades financeiras.
É insuficiente atribuir a crise, como parece fazer o presidente Fernando Henrique Cardoso, exclusivamente à imperícia da equipe do Banco Central. Ela efetivamente existiu. Há contudo fatores internos, estruturais, que vão muito além da maior ou menor perícia dos técnicos ou de dúvidas sobre a disposição do BC de queimar reservas ou comprometer-se com esta ou aquela banda cambial.
Entre esses fatores destaca-se, em primeiro lugar, uma dúvida de fundo sobre a capacidade do governo de promover uma inequívoca desindexação da economia. O Plano Real nasceu como plano antiinflacionário ancorado no câmbio. Diante do terremoto financeiro externo e da mudança da regra fundamental que sustentava o plano, tornou-se inevitável a desconfiança na viabilidade de levar-se a bom termo o projeto de desindexação da economia, tal como fora formulado.
As suspeitas são ainda mais incontornáveis quando o próprio presidente, na semana mais turbulenta de seu início de mandato, se desdiz e autoriza —com enorme antecedência— o aumento real do salário mínimo que a equipe econômica rechaçou nos últimos meses como medida inequivocamente inflacionária. Na mesma semana, aliás, em que a Fipe trouxe a público previsões de maior alta dos preços já em março, com a simultânea revelação de déficit do Tesouro.
A mudança tumultuada no caráter da âncora cambial ocorre portanto num ambiente onde não há, ou há cada vez menos, evidências de que o governo avança o suficiente no ajuste fiscal ou de que a economia esteja satisfatoriamente estabilizada. Assim, podem propagar-se expectativas de que, ao movimento do câmbio e dos juros, seguir-se-ão movimentos de preços e salários e, depois, do câmbio e dos juros. Uma ciranda conhecida.
Em resumo, se é verdade que há fatores externos e específicos da política cambial para explicar a confusão do pós-Carnaval, é igualmente verdadeiro, e preocupante, que no quadro mais geral da economia brasileira surjam outras dúvidas, que transcendem a regra cambial e envolvem a própria essência da confiança na estabilização.
Na semana passada o mercado pediu regras mais claras. O governo esperou por comportamentos mais racionais. Face à inabilidade do BC de oferecer as tais regras, a especulação propagou-se. E, frente à ciclotimia da manada, o governo viu-se acuado e ainda mais incapaz de dar o balizamento esperado.
É do interior desse jogo de espelhos que deverá sair a resposta ao desafio urgente, nas próximas semanas, de reinventar e legitimar um novo jogo em cujas regras se possa, novamente, acreditar.

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