São Paulo, domingo, 12 de março de 1995
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Os anos mais antigos do passado

CARLOS HEITOR CONY

RIO DE JANEIRO — Era uma noite dos anos mais antigos do passado. O menino estava na janela e olhava a noite. E a noite se tornou manhã e tarde, depois noite outra vez, e assim sucessivamente durante os anos mais antigos do passado.
E diante do menino passaram as coisas, passou o tempo e passou o mundo. Os mascarados do Carnaval, o sorveteiro e a leprosa que pedia esmola, lenço empoeirado cobrindo o rosto deformado e submisso. E naquele junho dos anos mais antigos do passado caiu o balão, fantasma colorido e ainda iluminado que desceu do céu, escolheu o seu jardim e nele pousou, trêmulo, o pai apagou o balão e o entregou para que guardasse.
O balão tinha cheiro da noite e do sereno, sua carne de papel era mansa e frágil, pássaro exausto que não podia mais voar.
E o menino continuou na janela vendo passar o soldado, o capitão e o ladrão. E diante dele passou o desfile de antigos fantasmas, cadenciadamente, os ranchos esfumaçados pela luz verde dos fogos de bengala, procissões de mascarados, lentos como num funeral, a burrinha de pano e papelão rodopiando entre as alas, o pierrô com seu bandolim prateado, o rosto branco, muito branco, banhado de luar.
E mais tarde, diante do menino abriu-se a bandeira grená com o Leão de Ouro, os músicos da Piazza San Marco tocando foxes dos anos 30 que penetravam no Café Florian, nos postais de Guardi, no lustre de vidro murano do Hotel Danieli.
A gôndola, comprida e fúnebre, passa pela casa de Wagner, mas não é Wagner que o menino ouve, é Vivaldi e Perosi que ali nasceram e viveram, atrás daquela ponte descascada pelo tempo —tempo que apodrece a cidade e agoniza na laguna.
E na janela do menino surge outra vez, boiando no espaço, a catedral de mármore, a sua. Não é a mais que branca: é verde e rosa como Santa Maria dei Fiori. Branca foi a noite em Florença: a moça segurou a mão do menino e o chamou para dentro. E o menino fechou a janela que nunca mais se abriria para os anos mais antigos do passado.

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