São Paulo, segunda-feira, 13 de março de 1995
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Os Carnavais brasileiros

FLORESTAN FERNANDES

Não existe "o" Carnaval brasileiro. Este é um tema importante, mas negligenciado. O concreto nos põe diante de um pluralismo: o Carnaval como algo mutante, seja no corte transversal —dos vários Estados e regiões do país, seja na perspectiva vertical— o de sua evolução em sintonia com as transformações dos nichos culturais e das condições de vida dos atores principais.
Um equívoco precisa ser evitado. Trata-se da relação entre Carnaval e prazer. Não há, na realidade brasileira, um "homo ludens" universal. Está claro que a repetição de certos traços psicossociais e de algumas funções lúdicas é natural. Esses elementos invariáveis não explicam o Carnaval nem suas mutações. As interpretações mais rigorosas devem levar em conta a superposição entre o que aparece como sincrônico —a coexistência de fatores determinantes— e o que traduz a causação a nível diacrônico— a variação no tempo daqueles fatores.
Observamos conexões profundas entre dança —na forma de embrião originário— e rituais mágico-religiosos transplantados da África ou produtos de sincretismos transculturais, nascidos de contatos com os indígenas e com a "civilização". Essa manifestação do Carnaval deitava raízes na contra-aculturação, envolvida pela rebelião latente ou aberta do escravo. Ela se adensa com a crise da escravidão, no último quartel do século 19, provocando a multiplicação de práticas repressivas dos estamentos dominantes.
Com a urbanização e outros processos, como a secularização da cultura e a lenta racionalização progressiva dos modos de conceber o mundo, o Carnaval ganha maior espaço histórico. Suas continuidades, porém, centram-se na raça negra. No século 20 nasce a resposta urbana do negro, o protesto racial, em sua principal área de auto-afirmação coletiva. A sociedade é carnavalizada graças a uma aparente submissão aos modelos impostos pelas elites sociais. Não se pode subestimar o significado da reconstrução da sociedade branca, escravista ou oligárquica. Onde se pensa existir submissão, prevalece sua negação. Os negros e mulatos inserem na cultura popular a revolta contra o arbítrio dos que mandam e os privilégios raciais, caracterizando a possibilidade de uma convivência mais harmônica dentro do "mundo dos brancos", no qual o ritualismo da tolerância precisaria ceder lugar à igualdade racial.
A extensão da urbanização e o desencadeamento da metropolização impõem a substituição desse modelo de Carnaval. O negro e o mulato ressurgem fortalecidos, mesmo sob o paralelismo de dois Carnavais: o dos de cima —através do corso e, mais tarde, dos bailes em clubes fechados— e o de matriz popular. Ocorre a conquista de maior autonomia na crítica social e na assimilação livre de técnicas e valores sociais da "civilização". A sociedade brasileira adquire uma aparência caleidoscópica. Os Carnavais do Rio e, bem depois, os de São Paulo, diferem peculiarmente daqueles que se irradiam nos extremos norte e sul do país. Volto ao assunto na próxima coluna.

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