São Paulo, quinta-feira, 16 de março de 1995
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O sonho do jet-ski

MOACYR SCLIAR

A história, dizem, aconteceu com um assessor do ex-presidente Collor. Ele estava lendo a Folha, quando deu com a história do pedreiro que encontrou um jet-ski num depósito de lixo em Porto Alegre. Muito excitado, chamou a mulher:
— Você viu que coisa mais impressionante?
Ela passou os olhos na notícia, concordou:
— É. Deixarem um jet-ski no lixo é realmente impressionante.
— Não é isto. O que impressiona não é isto.
— O que é, então? — Ela não estava entendendo.
— O que impressiona — ele, impaciente — é este homem não saber o que é um jet-ski. Você acredita que isto seja possível?
Ela achava que sim, mas não queria contrariar o marido.
— Um jet-ski Yamaha, modelo Wave Blaster. Quem não conhece? Este pessoal está por fora, mesmo. Depois se queixam que o país não progride. Falta cultura, compreendeu? Cultura. Informação. É isto que está faltando.
Calou-se um instante e continuou:
— Posso imaginar esse homem, esse pedreiro, na frente do jet-ski coçando a cabeça e se perguntando o que poderia ser aquilo: "Parece uma moto, mas moto não é, porque não tem rodas. Parece um barco, mas barco não é..." Sabe o que ele deve ter pensado?
A esposa não tinha a menor idéia do que pode um pedreiro achar de um jet-ski.
- Ele deve ter pensado —concluiu triunfante o assessor— que se tratava de um veículo espacial. Não um disco voador, claro, mas um veículo espacial individual, daqueles que usaram em "Guerra nas Estrelas", você lembra? E aí decerto chegou correndo e gritando, os marcianos chegaram, os marcianos chegaram.
A mulher lia a notícia:
— Não é o que diz aqui. Diz aqui que uma sobrinha dele falou que era um jet-ski.
— Claro. — O rosto dele se iluminou. — E você sabe de onde ela tirou esta informação? Sabe?
— Ela lembrou de ter visto na tevê o Collor andando de jet-ski...
— Isto mesmo! Você viu? O povo lembra, minha filha. O povo não esquece. O povo tem na memória a imagem de seu presidente andando de jet-ski. Claro: qual foi o presidente que, depois dele, andou de jet-ski? O Itamar? O Fernando Henrique? Diga!
Ela teve de admitir: nenhum presidente, depois do Collor, ou mesmo antes dele, esteve associado ao dinâmico veículo aquático.
O assessor ficou um tempo em silêncio. Depois, voltou-se para a mulher, os olhos brilhando:
— Escute: e se a gente começasse a largar jet-skis por aí, assim como quem não quer nada, você não acha que ...
Mas não chegou a concluir a frase: não valia a pena. Há muitas formas de reabilitar a imagem de um ex-presidente, mas esta, sem dúvida, seria cara demais. E trabalhosa. Afinal —quem sabe quantos lixões existem neste país?

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