São Paulo, sexta-feira, 17 de março de 1995
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Globo vende eletrodoméstico psicológico

MARCELO COELHO
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Não sei como os baianos se sentem, quando são retratados nas novelas da Globo. Mas o maior susto que tive, nos primeiros capítulos de "A Próxima Vítima", não foram os tiros e atropelamentos da história, e sim o sotaque atribuído à po pulação paulistana.
A coisa funciona muito mal, e já foi criticada nas páginas da Folha. Tento desenvolver um pouco as razões desse fenômeno.
Claro que os paulistanos têm um sotaque característico. O estranho é que tentem reproduzi-lo, não exatamente como é, mas como se fosse um sotaque italiano.
A influência do italiano é forte, sem dúvida, sobre o sotaque paulistano. Mas não é tão óbvia, exceto no que diz respeito aos imigrantes propriamente ditos. Tudo pio ra, por certo, quando notamos chiados cariocas sob a fala dos atores que se esforçam para parecer nativos da Mooca.
Nativos: esta a palavra. Pois, na qualidade de paulistano, senti-me quase como um índio sob o olhar de um antropólogo alemão, tal a estranheza, o senso de exotis mo, com que São Paulo foi tratada na novela. Será que São Paulo é uma cidade tão estrangeira assim aos olhos dos outros brasileiros? Não sei. Mas desconfio de uma coisa: é o próprio gênero de encenação, a pobreza estética das novelas em geral, que leva a essa tentativa de "exotizar", "estrangeirizar" os habitantes de São Paulo.
Como se sabe, as novelas lidam com estereótipos: o malvado é sempre malvado, a fofoqueira repete-se em todos os capítulos com suas fofocas, a mocinha ingênua é uma mocinha ingênua. Tudo é o que é, e tem de ser como é —já que o público assiste novela enquanto cuida do jantar, perde um ou dois capítulos, e precisa sentir um terreno firme, de ponto de vista da psicologia dos personagens, para acompanhar a trama sem maiores dúvidas ou reflexões.
Nesse sentido, a novela de TV tem de ser previsível e evidente, como se fosse um eletrodoméstico. É algo que se liga e que funciona. Pronto, você está em casa. Assim como o cachorro abana o rabo, como a luz acende ao toque de computador, como o fogão esquenta a comida, como a geladeira produz gelo e conserva os alimentos, assim a novela repete, dia a dia, as dúvidas amorosas, a maldade e a pureza de Fulano e Beltraninha.
Torna-se, assim, menos um divertimento do que uma fonte de conforto psicológico. Mesmo o divertimento exige uma irresponsabilidade, uma leveza, uma ausência de pretensões estéticas, que a novela substitui por rotina, reiteração, pesadume, evidência. Depois da estréia de "A Próxima Vítima", passou na Globo "Uma Linda Mulher", filme com Julia Roberts e Richard Gere. Que alívio! Quanta graça, quanto talento, quanta agilidade nesta porcariazinha comercial de Hollywood, se comparada ao novelão grotesco que eu acabava de assistir! Falar de "indústria cultural" como se fosse a mesma coisa, confundindo "Uma Linda Mulher" e "A Próxima Vítima", já é fugir à verdade científica. Há uma indústria cultural sofisticada e alienante, bobinha e espertíssima, que nos diverte de fato. São as comédias de Hollywood.
Há outra indústria, que não é nem mesmo cultural —é a indústria de eletrodomésticos psicológicos, feita pela Globo. Não nos diverte. Surge apenas como reprodução do cotidiano.
Torna a trivialidade compreensível, faz do dia-a-dia algo de con fortavelmente banal.
As novelas da Globo se crêem realistas. São vendidas como uma espécie de retrato do Brasil.
Mas o que ocorre é o contrário. Todo realismo, em última análise, é também uma estilização, um resumo, uma síntese da realidade. Um romance realista, no estilo de Balzac ou de Graciliano Ramos, não deixa de estilizar a realidade. Estilizando, torna-se revelador. Retratando, é resultado de uma operação crítica.
O problema das novelas é que aspiram a esse realismo sem conseguir. Não conseguem por dois motivos.
O primeiro, acho eu, é que tentam retratar a realidade, mas só conseguem reproduzi-la. Há uma diferença entre retratar e reproduzir. Retratar é sempre, mesmo no realismo mais extremado, tentar resumir num traço a complexidade daquilo que se quer retratar. Reproduzir é simplesmente imitar o que acontece, ponto por ponto, sem nenhuma intervenção do artista, isto é, sem arte.
O segundo motivo é mais grave. É que mesmo esse esforço de reproduzir a realidade é feito de modo incompetente. O problema das novelas da Globo não é que sejam realistas demais. São realistas de menos.
Torna-se fácil reconhecer a falsidade dos sotaques, o estereotipado dos personagens, a didática estupidez de suas falas e atitudes. Tudo é ao mesmo tempo falso e trivial. O autor de novelas não tem nem sequer a liberdade para entrar num mundo da fantasia hollywoodiana. Está forçado a reproduzir o cotidiano, e a reproduzi-lo com incompetência capaz de simplificar ainda mais o cotidiano tedioso e triste de seu público. É nesse momento deprimente que intervém o talento dos atores. Às voltas com cretinices absurdas, com estereótipos, cabe aos atores da Globo dar o máximo em favor de uma plausibilidade que o texto, o gênero, a novela estão proibindo ditatorialmente.
Tony Ramos consegue, em "A Próxima Vítima", convencer sem sotaques. Claudia Ohana é suficientemente linda para ter o papel que tem. José Wilker é uma personalidade, e sobretudo uma voz, capaz de superar as besteiras que ele diz.
Mas tudo isso é pouco. O talento existe —mas a imbecilidade cotidiana, noveleira, global, parece estar seriamente empenhada em esmagá-lo.

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