São Paulo, domingo, 19 de março de 1995
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Um historiador na contramão

RENATO JANINE RIBEIRO
ESPECIAL PARA A FOLHA

O que faz um historiador que se define como "um homem de direita, um verdadeiro reacionário", ser amigo de Michel Foucault e de Ivan Illich, dois pensadores de esquerda que criticaram radicalmente nossa sociedade? Pois é este o paradoxo que exibe Philippe Ariès nas entrevistas que agora saem em português, em "Um Historiador Diletante".
A rigor, o título literal seria "um historiador do domingo", isto é, das horas de lazer. Ariès foi assim ignorado por muito tempo nos meios acadêmicos —mas mesmo assim inventou alguns campos de pesquisa mais promissores na história recente. Começou com seu livro sobre a criança no Antigo Regime, do qual há uma tradução brasileira abreviada, "História Social da Família e da Criança". Prosseguiu com uma série de trabalhos sobre as atitudes homem em face da morte.
Nos dois campos, Ariès é um grande inovador. Conta, em sua primeira grande obra, que no final do século 16 o filósofo Montaigne dizia ter perdido "dois ou três filhos em tenra idade". Podemos imaginar hoje um pai de família que não saiba o número exato dos filhos que teve? Pois este é um bom sinal de que só com o avanço da burguesia, nos séculos 17 e 18, surgiram costumes que hoje nos parecem naturais —entre eles, o amor dos pais aos filhos, associado a uma inédita valorização da intimidade.
Mas, se a "História Social" pode ser lida, por alguém que acredite no progresso, como uma prova da superioridade de nosso tempo sobre o Antigo Regime, as obras de Ariès sobre a morte mudam esse quadro por completo. Nelas, o que se mostra é como hoje resistimos, de todas as formas, à morte.
Antigamente, a "boa morte" era a anunciada, que dava tempo ao moribundo de preparar-se, fazendo as pazes com Deus e com os homens, para morrer cercado dos seus. Hoje, o que mais queremos é a morte fulminante, que poupa a todos de agonia; e, como ninguém deseja ver sua casa conspurcada pela morte, morre-se no hospital, geralmente após um prolongado e inútil sofrimento. A morte deixa de ser uma experiência humana, uma vivência, ainda que terrível ou limite, para se medicalizar e, assim, neutralizar.
Vê-se que Ariès detesta, como ele mesmo diz, "a privatização da vida", a destruição dos espaços comuns de sociabilidade sob o peso da tecnologia ou do individualismo —fenômeno este que considera ser "o sinal mais flagrante da modernidade". Isso explica seu reacionarismo: na direita francesa dos anos 30, com a qual simpatizava, ele enxergava ideais regionalistas, a defesa de tradições e culturas locais, cuja perda temia resultasse do capitalismo mais moderno ou do socialismo.
O curioso é que esse quase-pária do mundo universitário, simpatizante além do mais de doutrinas abominadas pela esquerda, veio a se identificar com maio de 68 —e a ser cada vez mais reconhecido desde então.
Como ele mesmo conta, nessa entrevista que deu, em 1980, a seu jovem colega Michael Winnock: "Maio de 68 surpreendeu-me. Sob um dilúvio de discursos e pichações, encontrávamos temas familiares de nossa infância, de nossa juventude reacionária: a desconfiança ante o Estado centralizador, o apego às liberdades reais e às pequenas comunidades intermediárias, à religião e à língua. Além disso, reconhecia uma atitude, semelhante à minha, de rejeição à política, de retorno a um mundo de profundezas coletivas e reprimidas —aquele que eu tentava atingir fazendo história. O que isso queria dizer? Aquilo que amávamos antigamente, nós, nossos pais e avós, havia desaparecido de nosso meio social, de nossa família política, como folhas mortas, e eis que ressurgia em meios diametralmente opostos, em jovens que podiam ser nossos filhos, à esquerda de um comunismo conservador".
Nada exprime tão bem a mudança de panorama político que afetou a cultura em torno de 1968. Temas que tradicionalmente eram de direita, como a defesa das diferenças, culturais ou regionais, passavam à esquerda, ao mesmo tempo que a velha bandeira esquerdista do universalismo (que vinha das Luzes, no século 18, atravessando a Revolução Francesa e culminando no "internacionalismo" comunista) se tornava um ideal de direita, associado ao progresso e à recusa do passado. Quem quiser entender Thatcher deve ler Ariès, que certamente a detesta...
E para nós, de países nos quais a sociabilidade e a vida em público têm importância maior do que nas nações mais ricas, a paixão de Ariès pela vida coletiva —aquela mesma que Sennett deplora ter morrido em "O Declínio do Homem Público"— pode constituir bom indício, não só de um assunto teórico a pesquisar, mas de uma contribuição que podemos fazer à sociedade que hoje se globaliza.
É muito oportuno ler Ariès, historiador na contra-mão dos valores do progresso, nesta época que valoriza tanto um modelo de sociedade e cultura que desqualifica os demais: porque são estes últimos, em sua obra, os que portam mais beleza, maior humanidade e interesse.

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