São Paulo, domingo, 19 de março de 1995
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Celebração dramática do gozo

MARIO VITOR SANTOS
EDITOR DE REVISTAS

"Mistério Gozozo", em cartaz no teatro Oficina em São Paulo, é uma peça marcada pela contestação a Jesus.
O personagem Jesus das Comidas, interpretado por Marcelo Drummond, urina do Corcovado sobre o Mangue, abençoa a desvirginização e consequente prostituição de Eduléia, anti-heroína de 16 anos. Ela vai acabar explorada por um vendedor de imagens sacras, Olavo dos Santos, que trai Diolinda, a mulher grávida.
A linguagem é irônica, agressiva, panfletária, brutal. O texto do poema original começa redefinindo o prólogo do "Evangelho de São João": "No começo era a Cantata", diz Jesus debochado, logo antes do estupro de Eduléia patrocinado pelo próprio Satã.
Os mistérios gozosos da liturgia cristã celebram a ressurreição, a ascensão do Senhor, o Pentecostes e a coroação da Virgem. Este "Mistério Gozozo" é também, e antes de tudo, uma peça religiosa, mas a seu modo. O poema dramático original ("O Santeiro do Mangue"), do comunista Oswald de Andrade, tinha esses elementos de uma religiosidade peculiar, alterada.
A peça, encenada sob a direção de José Celso Martinez Corrêa, potencializa aspectos de celebração, na busca do ponto de interseção entre religião, sexo e arte.
"Mistério Gozozo" questiona o dogma religioso, inacessível à razão. Duvida da justiça divina, de sua assexualidade e de sua inocência diante da tragédia humana.
Sendo a história sobre as prostitutas da extinta região do Mangue, há muitas cenas de sexo. Encenado ali ao pé do público, no corredor do teatro Oficina, de maneira ritualística e, tanto quanto a performance dos atores permite, explícita, o sexo aparece modificado como elemento dramático essencial.
Não é sexo puro porque é teatro, mas não é apenas teatro. É mais. Corrêa parece buscar um novo fazer teatral, que ultrapasse os limites da linguagem da arte, como se procurasse aproximá-la de um seu núcleo energético.
É uma nova razão de que o realizador convida o público a compartilhar, uma que reduza o teor de mentira, diga-se assim, existente em toda obra de arte, decorrente de sua mera existência, de sua transformação em algo nomeável, observável, o que implica uma certa negação do infinito impulso vital que a gerou.
No mesmo grau de ousadia está a abordagem de tema religioso, coisa que parece escapar aos limites estabelecidos pelos cânones culturais do momento.
Escrito entre 1930 e 1950, "O Santeiro do Mangue" permaneceu banido das edições do autor até 1967, quando Mario Chamie editou uma versão mimeografada. Em livros, só mais recentemente.
No poema, surge uma nova espécie de religiosidade centrada não na divindade em si, mas numa divinização do homem, que alcançaria esse estágio através do contato direto com as feridas sociais, do mergulho no Mangue.
Jesus das Comidas alude às Escrituras para dizer que Olavo é uma espécie de Oséias. Na "Bíblia", Deus ordena a Oséias que tome para si mulher e filhos da prostituição, porque seu povo se prostituiu, afastando-se do Senhor. A relação entre Deus e seu povo equivale a categorias do matrimônio.
No "Mistério", Oswald sugere que a religião também deve ser salva, afastando-se da subordinação a critérios da sociedade de classes, à ética de defesa da família, distancie-se de todo papel institucional que obstaculize o verdadeiro amor.
Os heróis do mergulho no Mangue são os heróis de Oswald à época da criação do poema: Marx, Prestes, Stálin, Timochenko, espécies de divindades de esquerda à época em que o texto foi redigido.
Tais referências datadas foram atenuadas e não atrapalham a encenação, embalada por músicas sublimes de José Miguel Wisnik. As partes musicadas —que têm sambas, raps, blues, quase todos os ritmos— são acentuadas por boas interpretações, especialmente sa de Denise Assumpção, que atinge auges notáveis de lirismo.
Depois do clima de celebração dionisíaca presente em "Ham-let", o espetáculo anterior da companhia Uzyna Uzona, surpreende que Martinez Corrêa consiga realizar agora uma peça contido, a partir de um texto bem mais caótico e fragmentário.
Parte disso emana da atitude do diretor presente em cena, no papel de uma espécie de arauto, a introduzir as diversas cenas, assumindo pequenos personagens, maestro da banda, condutor do ritmo.
A ação, porém, perde apelo a partir da metade da peça, quando cresce a participação de personagens inesperados, introduzidos sabe-se lá de onde. O clímax é a aparição da própria Madame Bovary, seguida de alusões a Lord Byron e a uma sucessão de mitos políticos da esquerda na primeira metade do século.
Dessa vez, Martinez Corrêa conseguiu níveis de acabamento bem superiores aos de "Ham-let". As grandes falhas continuam surgindo na cenografia e, principalmente, na pobreza e impropriedade dos figurinos.
A atriz Alleyona Cavalli faz uma Eduléia um tanto etérea, ausente, no que parece reincidir, desnecessariamente desta vez, no estilo que imprimiu à sua Ofélia em "Ham-let".
Marcelo Drummond mostra evolução em seu desempenho como ator. Seu Jesus das Comidas é um verdadeiro ultraje, quase insuportável em função do grau de ironia e desfaçatez que ele imprime às inúmeras alusões supostamente blasfemas —nem tanto, na verdade— do personagem.
Paschoal da Conceição faz um Seu Olavo pungente em sua ignorância oportunista. O desempenho é perfeito, o que agrega muito em termos de eficiência para o conjunto do espetáculo, pois em seu personagem estão as principais referências para que a ação tenha continuidade lógica aos olhos do público.
Vale ainda uma referência ao trabalho de iluminação, particularmente difícil num espaço cênico complicado como o do Oficina, em que o palco é na verdade uma passarela e os atores se misturam à platéia com frequência.
"Mistério Gozozo" consegue variar ambiências, criar situações intimistas, sagradas, obscenas. Grande parte desse mérito deve-se à habilidade dos iluminadores da companhia.
É mais do que satisfatório constatar que Zé Celso, depois de seu infarto provocado pelos ensaios para uma apresentação especial de "Mistério Gozozo", no ano passado, demonstra pleno domínio de sua atividade teatral. Um dos refrões que embala o gozo oswaldiano diz que "há um grande cansaço de explicar o mar". Tal cansaço não parece afetar o diretor e seu grupo.

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