São Paulo, domingo, 19 de março de 1995
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CARLA E A COROA

SÉRGIO DÁVILA

Se a comunidade portuguesa ainda não se manifestou, a família real brasileira -D. Joãozinho Príncipe à frente- foi unânime em reprovar o filme (leia quadro ao lado). A diretora se defende. "Eu quis ser divertida, não quis ser séria", diz. "E não peguei pesado mesmo." Segundo Carla, ela leu e sabe de coisas bem piores da corte portuguesa, principalmente na área de higiene. "Eles tinham um negócio chamado tigre, por exemplo, que era um vaso que ficava no meio da sala cheio de cocô. Não há o que dizer disso: é um nojão!"
O que mais chocou foi a sugestão de que ela não gostava de D. João. "Eu tenho tanto carinho por esta figura", retruca. "Uma das falas mais brilhantes do filme é dele: 'Quando não sabemos o que fazer, o melhor é não fazermos nada'". Quanto à autoironia ou à "fracassomania" imputadas no filme, Carla discorda: "Não debocho do Brasil, mas dos europeus."
Para ela, esta reação nasce da glamourização que as pessoas fazem de sua própria história. "Dona Maria, por exemplo, ficou louca mesmo, e gastava metade do dinheiro de Portugal construindo igrejas", garante. "Usei dados reais." Uma rápida olhada pelas estantes do escritório de sua produtora, no Rio de Janeiro, referenda a afirmação.
Entre latas e latas de filme, um projeto Keystone Moviegraph em 16mm do começo do século e as obras "Um Livro aberto - John Huston", "Como Filmar Buenas Películas", "Shakespeare e o Cinema" e "How I Made a Hundred Movies in Hollywood and Never Lost a Dime - Roger Corman", o que dá o tom são os livros sobre o período tratado no filme.
Assim, perto de um retrato de Carlota Joaquina quando jovem e um quadro do pintor A. Montague, encontra-se "Carlota Joaquina, A Rainha Devassa", de João Felício dos Santos, e "A Corte de D. João no Rio de Janeiro", dois volumes de Luiz Edmundo, entre muitos outros.
"Carlota Joaquina" não é exatamente a estréia de Carla Camurati na direção. Antes, ela esteve à frente de dois curtas -"A Mulher Fatal Encontra O Homem Ideal", de 1987, e "Bastidores", de 1990, sobra a peça "O Mistério de Irma Vap". Dois breves momentos de cineasta numa carreira de atriz que começou em 1979.
Naquele ano, Carla surgiu na Rede Globo, no episódio "Gatinhas e Gatões" da série "Amizade Colorida", com Antônio Fagundes. "Rendeu um abaixo-assinado da Liga das Senhoras Católicas de Santana", diverte-se até hoje. Econômica (seletiva? preterida?), ela não chega a ter em seu currículo mais de 20 trabalhos, divididos em teatro, televisão e cinema.
Foi atriz em oito longas -"Mas só levo em conta sete", diz, excluindo da lista "Os Bons Tempos Voltaram", de Ivan Cardoso, rodado em 1984. Seu début nas telas foi em "Olho Mágico do Amor", de 1982, "legal em sua estranheza", como ela define.
Sua última aparição global é na novela "Pacto de Sangue", de Herval Rossano, em 1989. "Não tenho seriedade suficiente para negociar salário na Globo", diz ela. "Se me oferecem pouco, em vez de ficar ofendida ou me humilhar, pergunto logo se eles sabem o preço do xuxu." Indagada se abandonou a carreira de atriz, responde, rindo: "Não que eu saiba".
Quanto a ser cineasta, diz que "desde pequena" era seu sonho. Começou quando essa primeira filha do jornalista Sérgio Camurati e da advogada Ana Maria de Andrade, de ascendência inglesa e italiana, abandonou o quarto período do curso de Biologia para se matricular numa escola de teatro. Não parou até conseguir forjar o primeiro longa.
Não fez curso teórico, sequer se preparou para isso: "Fui na raça, me sinto até um pouco envergonhada de dizer". Não, a jovem cineasta não diz ter a câmera de um Glauber ou enquadramento de um Bergman: faz questão de negar qualquer influência ou modelo seguido em seu estilo de dirigir.
"Não tem um plano em 'Carlota' que eu já tenha visto em outro filme". Carla Camurati não acredita em homenagens e citações: "Me sentiria copiando, me daria uma certa vergonha, me acharia canastrona, cafona". Até a ponta que faz em "Carlota", passível de ser interpretada como uma homenagem a Hitchcock, ela põe por terra: "As pessoas fantasiam muito, eu só fiz aquela cena porque a figurante faltou no dia".
O filme custou R$ 630 mil e já se pagou. "O que sobrar vou usar no próximo trabalho." Para Carla, o valor gasto está de bom tamanho. "Não acho que duas horas de cinema mereçam muito mais que isso", diz. "Vivo no Brasil e uma fita tem que sair baratinho, não é nada, é só para divertir as pessoas".
Se já existe um estilo Camurati de filmar, ele se revela também na escolha da equipe técnica. "Escolhi pessoas que sabiam de cinema tanto ou menos que eu", diz. Um exemplo é o fotógrafo Breno Silveira, em seu primeiro filme. Outro é a produtora executiva Bianca de Filippes (apesar do sobrenome, não faz parte de nenhuma casa real européia).
Bianca, 30, merece um parágrafo explicativo. Há dez anos produz peças de teatro (entre elas "Navalha na Carne", com Diogo Vilela e Louise Cardoso, em cartaz em São Paulo), e o cartaz de "Carlota Joaquina" reflete sua experiência: além dos sete principais, são 93 pequenos patrocinadores, que ajudaram o filme com permutas em troca do espaço. "É assim que fazemos no teatro. E deu certo no cinema", orgulha-se Bianca.
Carla prepara-se para dirigir seu segundo longa, "Copacabana", roteiro que escreveu no final das filmagens de "Carlota". "Começo a rodar em um ano", diz ela. "Fala da velhice e tem como fio condutor Copacabana, hoje um bairro de velhos."
Enquanto isso, deve tirar a poeira da carreira de atriz com o filme "Ele me Bebeu", baseado em conto de Clarice Lispector. A direção é de José Antônio Garcia. "Para ser atriz é legal ter personagens muito bons, se não você acaba falando o que não acredita", diz. Ela interpretará uma funcionária de uma agência de publicidade que se apaixona pelo mesmo homem que seu melhor amigo, o maquiador Serjoca. Como vingança, este passa a apagar os traços da amiga cada vez que a maquia.
Duas coincidências. Carla Camurati mora numa rua calma de São Conrado, na zona sul carioca. Sua bela casa se distingue das outras por três enormes palmeiras imperiais à frente. E o escritório de sua produtora fica numa outra ruela tranquila, não muito longe dali, ao lado do Jardim Botânico. As árvores foram iniciativa de D. Pedro 2º. E o parque, idealizado por D. João durante sua permanência no Brasil.

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