São Paulo, segunda-feira, 20 de março de 1995
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Vampiro não tem bons modos, diz Ferrara

ELAINE GUERINI
ESPECIAL PARA A FOLHA, EM DUBLIN

O americano Abel Ferrara, 43, e o francês Bertrand Tavernier, 54, foram os diretores homenageados durante o 10º Festival de Cinema de Dublin, na Irlanda. O evento, encerrado na última quinta-feira, destacou o trabalho dos cineastas com retrospectivas e exibições especiais de seus filmes mais recentes: "The Addiction", de Ferrara, e "L'Appât", de Tavernier.
"L'Appat" —o filme ganhou recentemente o Urso de Ouro no Festival de Berlim— é baseado em um caso real. Conta a história de três jovens franceses que decidem roubar para realizar o sonho de viver nos EUA ("onde é muito mais fácil ganhar dinheiro"). Sem qualquer experiência, eles perdem o controle da situação e acabam matando duas pessoas.
"The Addiction", de Ferrara, explora o dilema entre o bem e o mal utilizando o vampirismo como metáfora. A protagonista da história é uma jovem pacata que prepara tese de doutorado em Nova York (quem faz o papel é a atriz Lili Taylor). Após ser atacada por um vampiro, a garota ganha mais energia para continuar os estudos e comemora o êxito de sua tese sugando o pescoço dos membros de departamento de filosofia de sua universidade.
Ao longo do festival (uma mostra sem caráter competitivo), Ferrara e Tavernier concederam entrevistas exclusivas à Folha e falaram sobre os seus últimos filmes, carreiras e Hollywood. A seguir, os principais trechos da conversa com o diretor Abel Ferrara.

Folha - Em "The Addiction", você teve alguma razão especial para escolher o tema dos vampiros? Alguma ligação com os tempos de Aids?
Abel Ferrara - Eu escolhi o vampirismo porque ele simboliza bem a luta entre o bem o mal. Achei que seria a metáfora perfeita. Todos nós temos um lado obscuro, não adianta negar. Tudo o que nós precisamos é aprender a lidar com isto.
Mas é claro que a Aids está presente o tempo todo no filme. Neste caso, nem se trata de uma metáfora, mas sim de um fato da vida. O ambiente que envolve a personagem está repleto de drogas, jogo do poder, sedução, morte e tudo o que é ruim.
Hoje em dia, ninguém consegue ver sangue sem fazer uma associação imediata com a Aids. O sangue tem um significado diferente, parece ter se transformado em uma coisa ruim. As minhas filhas, por exemplo, ficaram apavoradas quando viram uma gota de sangue na escola. O clima é de terror.
Folha - Filmar em preto e branco foi uma tentativa de suavizar este impacto?
Ferrara - Sim e não. Admito que eu gosto da idéia do sangue preto. Acho que o preto está muito mais próximo do mal, do maligno, da morte. Além disso, a primeira visão que eu tive do filme foi em preto e branco e eu achei que assim ficaria melhor. Mas é verdade que, se o filme fosse colorido, as cenas de sangue ficariam muito exageradas, repulsivas. Acho que o público ficaria enjoado.
Folha - "The Addiction" é o seu anti- "Entrevista com o Vampiro"?
Ferrara - Pode ser. Acho que sim. O meu filme traz a minha visão sobre os vampiros, o mal. Na minha cabeça, eles não são jovens bonitos que fazem a corte antes de atacar. Para mim, vampiro não tem essas bobagens. Ele chega, morde o pescoço e pronto. Não dá para disfarçar o mal com boas maneiras.
Folha - Comparado com seus filmes anteriores ("Vício Frenético", "Os invasores de Corpos" e "Olhos de Serpente", entre outros), "The Addiction" conta com um final surpreendente...
Ferrara - É verdade. Desta vez, eu deixei o meu lado do bem falar mais alto. Como o mal está dentro de nós, qualquer um pode ser dominado e possuído a qualquer momento. Mas, ao mesmo tempo, existe uma saída. É só você mudar de lado e pedir perdão que ele (Deus) vai te ajudar. É difícil, mas não é impossível. A violência, em todas as suas formas, é apenas um reflexo do mal que nós carregamos, isto faz parte da nossa natureza. Só é preciso aprender a controlar.
Folha - Qual é a sua principal intenção quando você destaca violência, corrupção, degradação e outros temas obscuros em seus filmes?
Ferrara - O meu trabalho como cineasta é a maneira que eu encontrei para me expressar. Eu apenas mostro as coisas do jeito que eu vejo na vida real. Infelizmente, a minha visão do mundo não é cor-de-rosa. É por isto que eu não gosto de 99% dos filmes produzidos em Hollywood. Eu prefiro mostrar a realidade.
Mas, ao mesmo tempo, não tenho a intenção de manipular ou influenciar ninguém. Eu simplesmente projeto na tela o que sinto. A violência é uma coisa tão velha quanto o próprio mundo. Ninguém precisa ir ao cinema para ver violência, é só sair pelas ruas.
Folha - Você nunca pensou em se render aos padrões de Hollywood e dirigir um projeto comercial?
Ferrara - Não. Eu gosto de ser um diretor polêmico. Eu sou diferente. O que quero é chocar as pessoas, fazê-las pensar. Não gosto de filmes de puro entretenimento. O dinheiro é bom, mas não vale a pena. Eu quero ter a minha liberdade de falar sobre o que bem entender.

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