São Paulo, segunda-feira, 20 de março de 1995
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Escolas de samba e Carnaval

FLORESTAN FERNANDES

O meio social interno do Carnaval é muito fluido e volátil. No passado, sua reprodução dependia do comportamento social espontâneo e da ousadia dos atores sociais. Ainda assim, existiam fatores ou forças sociais que lhes conferiam um mínimo de suporte, como a solidariedade mágico-religiosa e as irmandades de homens negros.
Ao se institucionalizarem, as escolas de samba evoluíram no sentido de um mínimo de estabilidade e com tendências aglutinativas que plantavam o Carnaval no seio das cidades. Isso significava que ocorrera um desenvolvimento constante nas atitudes e expectativas que marcam sua aceitação por outros setores sociais.
Em consequência, foram neutralizadas gradualmente a rejeição desse florescimento da cultura popular e a resistência a reconhecer a capacidade de negros e mulatos de ativar apoios externos. As elites perderam muitas prerrogativas no uso da repressão, aplicada contra uma identidade recusada. Negros e mulatos ganharam o centro do palco na criação das inovações culturais exigidas pelo Carnaval.
Essa diferenciação se deu com maior rapidez em uma cidade com maior índice de cosmopolitismo e mais intensa densidade urbanizadora, como o Rio, que ficou preso ao destino do Carnaval. Nele, a "ralé" excluída das instituições oficiais ganhou novo esplendor.
Os limites e os obstáculos à diferenciação progressiva provieram do capitalismo. Com raras exceções, os estratos negro, mulato e branco pobre possuíam uma baixa posição quanto ao nível de vida e às probabilidades de poupança. Em contraste, o custeio de fantasias, carros alegóricos e outros itens essenciais eram pesadíssimos.
Foi preciso um contínuo desgaste para colocar as escolas de samba em exibição pública. Tornou-se imperioso recorrer aos artistas, cuja colaboração foi estimulante e permitiu superar as áreas mais sufocadas. A figura dos "protetores" surge nesse difícil contexto. Isso em detrimento do autocontrole e da autoconfiança dos grupos carnavalescos organizados.
Os males intrínsecos ao capitalismo desabaram com maior vigor, daí para a frente. Foi inevitável aceitar acomodações com fabricantes de bebidas, "bicheiros" e até líderes do narcotráfico. As fontes de "ajuda oficial" eram parcas e vacilantes. Nos seus três níveis de administração, o Estado não compreendeu o alcance do dilema e a necessidade de resolvê-lo.
Tais restrições são típicas de uma situação precária, de capitalismo agreste, espoliador e destrutivo. Com a ditadura militar recrudesceram as pressões de cima. Por fim, acabou por se desenhar uma adaptação negativa, de reforço dos antigos preconceitos predatórios contra a cultura popular.
A sinistrose posterior, entre os governos de Sarney e de Collor, agravou ainda mais os problemas. Mas isso já é bem conhecido... Retomarei o tema na semana que vem.

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