São Paulo, segunda-feira, 20 de março de 1995
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A voz do Rio

CARLOS HEITOR CONY

RIO DE JANEIRO — A cidade está decadente. Transformou-se num valhacouto de assassinos, ladrões, marafonas e traficantes. Tirante o Cristo Redentor, que resiste impávido lá em cima do Corcovado, tudo no Rio é baixo astral. Nódoa que envergonha a federação e cobre de vexame as demais cidades, limpas, ordeiras e habitadas por seres de eleição. O carioca é um mocho aidético caído num ninho de saudáveis rouxinóis.
Apesar disso, o Rio está como o diabo gosta. Tanto o diabo gosta que desconfio do próprio Cristo (ou do próprio diabo): no fundo, eles devem se entender. Desde a revolta dos anjos, no limiar da Criação, que os dois não concordam entre si.
Na sexta-feira, trabalhava na edição da Biblia, procurava achar em que versículo de Mateus é citado um cântico de Isaías —quando alguém me informou que estavam vaiando FHC no centro da cidade.
Nada de pessoal contra FHC. Ninguém vaiava o carioca Fernando Henrique Cardoso, mas o presidente da República. E logo me deu vontade de juntar-me à barricada (da vaia, não do tumulto), clamando pelas minhas carências, embora no momento minha carência fosse encontrar o tal versículo de Isaías.
Em 1965, fui com amigos vaiar outro presidente na porta do Hotel Glória. Os tempos eram outros, havia cana e foi em cana que entramos. Glauber Rocha, Callado, Flávio Rangel, Marcito, Thiago de Mello, Joaquim Pedro, Mário Carneiro e Jayme Rodrigues protestamos em veementes brados contra o marechal Castelo Branco.
O vespertino "O Globo" chamou-nos de comunistas e cafajestes. "O Estado de S. Paulo" exigiu que fôssemos banidos do território nacional. Mas tivemos a nossa paga: dentro de umas galinhas com farofa que a mãe do Glauber conseguiu mandar para a cela, havia o recorte de um jornal da Argentina com a manchete: "Patearan el mariscal!"
Foi o primeiro e, durante anos, o único protesto mais ou menos organizado contra um sistema que desejava fazer do Brasil um país com PIB de Primeiro Mundo e povo de último mundo. O Rio pode não ter vez, mas sempre teve voz. Como nos rádios de antigamente, quando terminava um número musical, o locutor informava: acabamos de ouvir a voz do Rio.

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