São Paulo, terça-feira, 21 de março de 1995
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Vida vivida e vida percebida

ANDRÉ LARA RESENDE

"Espero que cada um de nós seja dono dos fatos de sua própria vida", disse Ted Hughes numa carta de protesto a um artigo que considerou particularmente intrusivo. Hughes acabou por recorrer ao silêncio. O fascínio exercido pela força da personalidade de sua ex-mulher, Sílvia Plath, não lhe deu alternativa.
Poeta de perturbadora agressividade sob a aparência de boa menina de classe média americana, Plath selou sua sorte: jovem, suicidou-se. Sua vida vivida terminou ali. Sua vida recriada é um culto; objeto de estudos, ensaios e várias biografias. A mais recente não é bem uma biografia, mas uma maravilhosa meditação sobre a arte da biografia.
Em "The Silent Woman", Janet Malcolm não fala da vida de Plath, mas do seu pós-vida. Uma extraordinária reportagem sobre o drama do seu legado. Há um aparente paradoxo no livro de Malcolm. Seu ceticismo sobre as possibilidades da reconstituição da verdade biográfica não a impede de fazer o retrato vivo da biografada. A impressão de conhecer Plath, de compreender sua tragédia, é única.
É a repórter em Malcolm —pois ela assim se percebe— que comenta a queixa de Hughes. Segundo ela, todos sabem, é claro, que não somos de forma alguma "donos" dos fatos de nossas vidas. Essa propriedade foge de nossas mãos ao nascer, no primeiro momento em que somos observados. Os meios de comunicação são apenas a extensão e a magnificação da incorrigível vontade de meter o bedelho na vida alheia.
Não existe fato, só versão. Não existe vida, mas relato de vida. Não há relato sem interpretação. Poderosos, portanto, os que fazem relatos. Que poder detêm no mundo moderno! Só está vivo quem tem a vida reportada e a privacidade só é concedida aos que não têm vida. Aqui está a chave da obsessão pela notoriedade, e a sua trágica contradição: só se está vivo quando não se é mais dono de sua própria vida. Sua vida toma vida própria.
É ainda Malcolm quem observa: em nenhum outro momento, talvez, o poder da imprensa é tão evidente, tão perturbador, quando parte do seu fluxo contínuo é congelado em estalactites conhecidos como "material de arquivo". Reportagens jornalísticas que foram originalmente escritas para satisfazer nossa fome diária por pequenas maldades —para excitar, divertir e serem esquecidas na semana seguinte— agora tomam lugar entre as fontes sérias de fatos e informação. São tratadas como se não estivessem apenas levantando questões sobre o que ocorreu, sobre quem é bom e quem é mau.
"Daddy", um perturbador poema de Plath, termina num desabafo: "Daddy, daddy, you bastard, I'm through."(*)
Substitua-se pai por imprensa moderna —peço licença poética: ambos detêm o poder de dar vida. Quem ficará na vida pública?

(*) "Papai, papai, seu canalha, pra mim chega."

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