São Paulo, quinta-feira, 23 de março de 1995
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Gotham City

OTAVIO FRIAS FILHO

Em pleno ufanismo dos anos 50, diziam que "São Paulo não pode parar". No começo dos 70, o então prefeito Figueiredo Ferraz inverteu a fórmula ao declarar que "São Paulo precisa parar". Mas coube a Maluf, nos 90, realizar o sonho: São Paulo finalmente parou.
São congestionamentos babélicos, apocalíticos, que fazem lembrar o conto surrealista de Cortázar em que as pessoas vivem, comem, dormem, fazem amor em meio aos carros parados.
Ao comentar o assunto nesta página, Clóvis Rossi confessou o desejo sádico, que o acomete às vezes no trânsito, de que a moeda se desestabilizasse de novo. Pois não há dúvida de que a melhora no poder de compra despeja mais pessoas e carros na rua.
Eis uma segunda tragédia, revelada no Plano Cruzado. Não apenas temos sido incapazes de garantir um mínimo de qualidade de vida para a maioria. Quando realizamos, artificial e temporariamente, essa proeza, não há bens, equipamentos, espaço nas ruas para atender a demanda.
Havia algo de intrigante, de suspeito ou perverso no lema malufista "Amo SP, voto Maluf". São Paulo sempre foi uma cidade detestável. A façanha do prefeito consistiu, vemos mais claramente agora, em piorá-la.
O método utilizado foi atulhar a cidade de obras viárias, destinadas a infernizar o trânsito a curto prazo e garantir a sua definitiva inviabilização a longo prazo. Até os especialistas, em geral os que menos entendem dessas coisas, admitem que quem planta avenidas colhe engarrafamentos.
A solução é o transporte público. Mas a incômoda verdade sobre o transporte público é que ele só melhora se a classe média, compelida a deixar o carro, criar uma pressão política sobre as autoridades. A população pobre gera pressão nos surtos eleitorais, e olhe lá.
Enquanto isso, Maluf reina como um Nero (com quem compartilha, aliás, o gosto por instrumentos de corda) sobre o caos ou, para sermos mais exatos, como o Pinguim no episódio em que consegue se eleger prefeito de Gotham City, a cidade do Batman.
A alusão é menos gratuita do que parece. Porque no entorno (como dizem os técnicos) das novas obras trabalha-se na calada da noite, faça chuva ou faça sol, dia útil ou feriado, no levantamento de misteriosos arranha-céus.
À falta de outro motivo comprovável, só podemos atribuir tamanha pressa a alguma crença dos incorporadores de que, com a aproximação do milênio, o mundo acabe sem que concluam seus mausoléus de cimento e vidro fumê.
Se depender de Maluf, São Paulo não abre mão do pioneirismo e acaba antes. E por falar em pioneirismo, vêm aí esses fantásticos certificados mediante os quais você paga à prefeitura para que ela burle a Lei do Zoneamento, último obstáculo à desordem imobiliária.
Precisamos de criatividade, certo? Aqui vai uma sugestão. Maluf abandona a política em troca de uma sala dotada de recursos de realidade virtual: despacha com "ministros", vê notícias sobre o dia do "presidente" Maluf na TV e ao olhar pela "janela" descortina a imensidão do Planalto.
Ficava mais em conta para os cofres públicos.

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