São Paulo, quinta-feira, 23 de março de 1995
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A missão do embaixador Itamar

GERARDO MELLO MOURÃO

A chegada do ex-presidente Itamar Franco à Embaixada do Brasil em Lisboa (Portugal) está destinada a transformar-se num acontecimento político duplamente importante, com significativas consequências na política interna e na política externa. Os que acompanharam de perto a expectativa de aceitação do cargo pelo ex-presidente sabem que nela pesaram longas ponderações e exercícios de prudência logística.
Ninguém ignora que o nome do sr. Itamar Franco polariza, desde já, robustas especulações em torno da sucessão do sr. Fernando Henrique Cardoso. Nada mais sábio, portanto, para um candidato —e um candidato "in pectore", tanto da oposição como da continuidade do presidente por ele inventado e eleito— do que afastar-se das rinhas tucanas onde sempre haverá, mesmo à revelia do professor Cardoso, bicos indóceis dispostos a arranhá-lo e desgastá-lo.
Na gestão do embaixador Itamar Franco deve consumar-se em Lisboa o projeto ali iniciado pelo ex-embaixador José Aparecido para a institucionalização da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP), que reunirá as sete nações lusófonas de três continentes, onde mais de 200 milhões de pessoas falam nosso idioma.
A cimeira dos sete chefes de governo que sancionará o sonho da criação de um tipo novo de império entre as nações —um império moral, cultural e espiritual— será, sem dúvida, a chave de cúpula da missão do embaixador Itamar Franco em Lisboa. Mas para cumpri-la, ele terá também de cumprir certos ritos sobre os quais se está construindo a magnífica utopia de nossa comunidade de europeus, latino-americanos e africanos —e até, no futuro, de asiáticos, como o país do Timor-Leste.
Seremos uma espécie de supernação de sete países independentes, de negros, brancos, mestiços e amarelos, cujas identidades díspares e múltiplas encontram na língua comum a pauta de sua unidade harmônica.
Dos países da América Latina dizia o estadista argentino Sáenz-Pe¤a que "tudo nos une, nada nos separa" —um "wishful thinking", que levaria meu saudoso amigo Madeira de Freitas, o famoso Mendes Fradique, o maior humorista brasileiro de todos os tempos, autor da "História do Brasil pelo Método Confuso", a dizer que, na verdade, "tudo nos zune", do Amazonas ao Rio da Prata... Hoje os tempos são outros e como sócios-condôminos da língua comum, nada nos zune, nada nos separa.
E nada nos separa porque, além de falarmos juntos esta que é a mais refinada das línguas latinas, as mesmas fronteiras históricas nos identificam. Temos o mesmo passado. E assim temos o mesmo presente e o mesmo futuro. Pois, como queria Eliot, "o tempo presente e o tempo passado estão ambos presentes no tempo futuro, e o tempo futuro está guardado no tempo passado". Nesta, que é a mais bela teoria do tempo, e que está nos primeiros versos do primeiro quarteto, o "Burnt Norton", vai desenvolver-se a primeira tarefa da aventura diplomática, da aventura geopoética do embaixador Itamar Franco em Lisboa.
Portugal não deseja fundar a comunidade do futuro em que nos empenhamos, sem plantá-la no chão de sua realidade histórica: o chão do mar das descobertas. Para isso constituiu uma Comissão de Comemorações do Quinto Centenário dos Descobrimentos, na qual o Brasil foi integrado por decisão do Itamaraty. Tenho a honra de participar juntamente com dois outros representantes brasileiros, o professor Francisco Iglésias e o comandante Max Guedes, dessa comissão bilateral.
O órgão português, presidido pelo poeta Vasco Graça Moura, e que tem recursos de US$ 5 milhões para os trabalhos das comemorações, requereu ao Itamaraty, através do diretor do Departamento Cultural, embaixador Sérgio Teles, a consolidação da comissão brasileira, com a qual deverá reunir-se nos próximos 30 ou 60 dias.
Este deverá ser, como se espera, o primeiro passo do embaixador Itamar Franco —aparelhar a comissão brasileira, como órgão bilateral. Nosso futuro, que é a institucionalização da comunidade, não será construído sem a presença de nosso passado comum, nas comemorações do Quinto Centenário, que ocorrerá no ano 2000, mas que começa a ser celebrado desde agora, em promoções que culminarão com a última Exposição Internacional do Milênio, acontecimento mundial a realizar-se em Lisboa em 1997.
Quando secretário de Cultura do Rio de Janeiro, fiz incluir, no projeto de Orçamento do Executivo, exatamente quando Portugal acabava de aprovar seus recursos para as comemorações, verbas específicas que assegurassem a presença do Rio nesses eventos históricos e culturais. Dois ou três legisladores ignorantes, de cujos nomes não me lembro e de que a história também nunca se lembrará, derrubaram a indicação, alegando que o Brasil não foi descoberto pelos portugueses e que, além disso, o centenário das comemorações não ocorria em 1991, ano de minha proposta, mas apenas no ano 2000.
Agora, Itamar vai para Portugal, que lhe concedeu em tempo recorde, numa homenagem inédita nos anais diplomáticos, o "agrément" oficial. Também em tempo recorde deverá ter seu nome aprovado pelo Senado, onde o relator de seu processo de aceitação será o próprio presidente da Comissão de Relações Exteriores, o senador Antônio Carlos Magalhães, por acaso o mais competente representante da "realpolitik" do Congresso.
O que se espera é que o novo embaixador em Lisboa seja uma garantia de que o governo do presidente Fernando Henrique invista nos projetos de identificação de nosso passado, de nosso presente e de nosso futuro luso-brasileiro, a mesma eficiência e a mesma lucidez oferecidas pelo ex-presidente Itamar Franco, e tão fervorosamente levadas às sete chancelarias da língua portuguesa pelo ex-embaixador José Aparecido de Oliveira.

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