São Paulo, sexta-feira, 24 de março de 1995
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Reestruturação da Previdência

OCTAVIO BUENO MAGANO

"Quão ridícula e miserável é a luz mortiça de uma vela em presença da luz vivificante do sol..."
(Aluisio Azevedo)
O constituinte de 1988, ao elaborar o capítulo da Previdência Social, o fez com o desígnio de superar, em magnificência, os principais modelos estrangeiros, os quais, porém, foram por ele lidos à luz de vela e de olhos fechados para a realidade nacional.
O resultado mostrou-se desastroso. A Previdência, em virtude de seu gigantismo, converteu-se em foco de corrupção; por causa de seus continuados déficits, tornou-se fator permanente de instabilidade financeira; alicerçou-se em sistema de contribuição extremamente oneroso para as empresas, estimulando o mercado clandestino de trabalho; deu margem à proliferação de privilégios; criou distorções gravosas, como a aposentadoria por tempo de serviço.
Para mitigar os efeitos perversos do sistema então implantado, acaba o governo de remeter ao Congresso projeto destinado a reformulá-lo (Folha, 17/03/95).
Realça-se nele, em primeiro lugar, a abolição de alguns privilégios gritantes. Com nova redação dada ao artigo 40 da Constituição, eliminam-se as aposentadorias integrais no setor público. Admite-se que os servidores da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos municípios possuam regimes próprios de previdência, observados, todavia, os requisitos e critérios estabelecidos para o regime geral, com vedação, inclusive, de dupla aposentadoria no mesmo sistema.
Com a adição de um parágrafo ao art. 37 da Lei Magna, veda-se a percepção simultânea de rendimentos de aposentadoria com a remuneração de função pública; com o acréscimo de outro parágrafo ao mesmo preceito, proíbe-se a instituição de regime previdenciário pelo exercício de mandato eletivo. Abolem-se, em outra passagem, as aposentadorias especiais, ressalvada a hipótese de atividade exercida em condições prejudiciais à saúde; em mais outra, tolhe-se a continuidade de planos de previdência complementar, organizados com espírito corporativo, junto aos entes estatais. Para esse efeito, estatui-se que a participação de tais entes no custeio dos mesmos planos não poderá exceder a participação dos segurados.
Tais modificações se mostram prementes sobretudo quando se tenha presente que, na esfera da União, os pagamentos com os aposentados e pensionistas encontram-se praticamente no mesmo nível que as despesas com os funcionários ativos.
No que concerne ao regime geral de previdência, dispõe-se que as alterações de conteúdo, relativas às prestações, prazos de carências e valor máximo de benefícios, deverão ser objeto de lei complementar. Há, porém, indicações claras de que esta deverá orientar-se no sentido da supressão da aposentadoria por tempo de serviço, elevação de prazos de carência e fixação dos limites de aplicabilidade do sistema respectivo.
Enquanto não vier a ser aprovada lei complementar, com as apontadas diretrizes, prevê o projeto a manutenção do "status quo", com as seguintes principais alterações: a) eliminação da aposentadoria proporcional por tempo de serviço, com 30 anos para o homem e 25 para a mulher; b) redução de cinco para três da diferença a menor da aposentadoria do trabalhador rural, comparativamente à do urbano; c) extinção da aposentadoria especial dos professores aos 25 anos de idade.
Com esse expediente de acenar para a desejabilidade de modelo puro a longo prazo e de tolerar a continuidade do atual, expungido apenas de suas principais distorções, o governo visa obviamente facilitar a tramitação de seu projeto, confirmando o entendimento corrente de que a política é uma arte e todo político, necessariamente, um artista.
Outro ponto revelador da habilidade governamental e que corta cerce a demagogia dos que lhe imputavam o desígnio de encurtar direitos dos trabalhadores consubstancia-se na ressalva abaixo transcrita: "Art. 12 — Fica assegurado o direito à aposentadoria e pensão nas condições previstas na legislação vigente à data da promulgação desta ementa, somente para aqueles que estejam em gozo do benefício ou que nessa data tenham cumprido os requisitos para obtê-lo, aplicando-se-lhes, ainda, o disposto no parágrafo 6º do art. 9º desta emenda."
Igual habilidade não revelou, porém, o governo, no manejo da linguagem com que compôs o seu projeto.
A título apenas de ilustração, atente-se para a redação do parágrafo 2º, do art. 114, onde se diz que nenhum pagamento decorrente de acordo ou de execução de sentença deverá efetuar-se sem prévio pagamento das contribuições incidentes. Incidentes sobre o quê? Incidentes sobre os valores respectivos, eis o complemento faltante. Considere-se, a seguir, o art. 201, onde se afirma que "a Previdência Social será organizada (...) observados critérios que preservem o equilíbrio financeiro e atuarial", ao invés de "seu equilíbrio financeiro e atuarial". Veja-se, por fim, o trecho do art. 13 em que se alude a segurados em gozo de benefício "ou que (...) tenham implementado os requisitos para obtê-lo". Essa passagem ficaria muito melhor se assim reformulada: "ou que (...) hajam satisfeito os requisitos para o obter."
Dir-se-á que linguagem é coisa de somenos. Mas a isso se redargue com a obtemperação de Rui Barbosa de que a inteireza do espírito começa por se caracterizar no escrúpulo da linguagem. E, como a falta de escrúpulo em uma prática tende a generalizar-se, isso talvez explique o teor do art. 16 do projeto, excluindo, pelo prazo de dois anos, os ocupantes de cargo em comissão —entre os quais se inclui o senhor ministro da Previdência e Assistência Social— da regra proibitiva de acumulação de aposentadoria com cargo público, exclusão essa que o jornalista Janio de Freitas, eufemisticamente, denominou de "privilégio escondido" (Folha, 19/03/95).

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