São Paulo, sábado, 25 de março de 1995
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'Barquinho' uniu casal e rachou bossa nova

RUY CASTRO
ESPECIAL PARA A FOLHA

"Barquinho", o famoso LP de 1961 que celebrou o casamento da cantora Maysa com a bossa nova, estava esgotado há anos no seu formato e capa originais. Ressurge agora em CD pela Sony, para provar que a música adulta e inteligente que um dia se produziu no Brasil é capaz de atravessar décadas e fisgar ouvintes que nem eram nascidos naquele tempo.
É um disco que contém não apenas música, mas história: de certa maneira, rachou a bossa nova ao meio e propiciou o surgimento da MPB de protesto. Mas ninguém ficará sabendo disto ao comprar o CD, porque o encarte não traz qualquer informação. É como se a Sony considerasse os compradores de seus discos uma multidão de sumidades em música popular. Ao lançar um disco nessas condições, ela mostra apenas o seu desprezo pelo comprador.
A história é a seguinte. Antes de gravar "Barquinho", Maysa era famosíssima, mas nem tanto como cantora: seus discos não vendiam à altura de sua reputação, a qual vivia sendo abalada pelas confusões em que se metia quando estava 38 uísques acima da humanidade.
Era uma espécie de deusa "dark", rainha das canções de dor-de-cotovelo e, na vida real, parecia a perfeita encarnação do que cantava. Mas até ela já estava farta dessa imagem.
Já a bossa nova, depois da explosão inicial com João Gilberto, precisava de uma cantora que fosse um nome nacional. Maysa seria o ideal —principalmente porque já estava de olho, para fins amorosos, no letrista Ronaldo Bôscoli. Ele, que nunca recuou diante dos grandes desafios, começou a namorar Maysa às escondidas de Nara Leão, então com 20 aninhos e sua noiva.
Maysa e Bôscoli, acompanhados pelo pianista Luizinho Eça, o violonista Roberto Menescal e o trio do também pianista Luiz Carlos Vinhas, partiram para uma rápida temporada de shows em Santiago, Montevidéu e Buenos Aires. O romance pegou fogo entre um show e outro e foi abrilhantado pelas primeiras brigas entre eles. Na volta ao brasil, ainda no aeroporto de Ezeiza, em Buenos Aires, Maysa telefonou para o Rio e avisou: "Me mande a imprensa para o Galeão. Tenho uma bomba".
A imprensa compareceu e lambeu a ponta dos lápis. Maysa desembarcou agarrada ao braço de Bôscoli e disse aos repórteres: "Quero comunicar que vou me casar com Ronaldo Bôscoli, aqui presente, e ninguém vai me impedir". Sons de "ohs!". O primeiro a ficar atarantado foi Bôscoli —isso não tinha sido combinado entre eles. Os outros espantados foram os repórteres. E, por último, mas não menos, foi Nara Leão, ao saber pelos jornais que seu noivo ia casar-se com outra.
Não foi possível a Ronaldo Bôscoli desentortar o mal que já estava feito. Nara jurou nunca mais vê-lo e juntou-se ao grupo de Carlinhos Lyra, que vinha se aproximando dos sambistas de morro e de uma bossa nova mais "autêntica". O resto se sabe: Nara tornou-se a "musa do protesto" e seu show "Opinião" dividiu as águas da música popular.
Quanto à canção "O Barquinho", que Bôscoli fizera para Nara (e que se parecia tanto com ela), acabou nas mãos de Maysa, que a lançou nacionalmente. Bôscoli aproveitou e, com diversos parceiros, escreveu uma série de outras canções com o jeito de Maysa e que compuseram o disco "Barquinho". Este foi um sucesso de vendas e a bossa nova ganhou o seu novo rosto: mais maduro, sofrido, dramático —o rosto de Maysa.
Hoje, 34 anos depois, ainda é um grande disco. Além de "O Barquinho", tem belezas como "Eu e o meu Coração", de Inaldo Villarim e Toninho Botelho, e "Lágrima Primeira" e "Errinho à Toa", ambas de Menescal e Bôscoli. Mas tudo ficava bonito na voz de Maysa.
Ah, sim. O romance Maysa/Bôscoli também não deu certo.

Título: Barquinho
Artista: Maysa
Gravadora: Sony/Columbia
Preço: R$ 18 (o CD, em média)

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