São Paulo, domingo, 26 de março de 1995
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Para americano, disciplina é questão de bom senso

CARLOS EDUARDO LINS DA SILVA
DE WASHINGTON

O culto à auto-estima e a indulgência com os filhos criaram nos EUA gerações de crianças mal-educadas, apáticas e amorais.
Esta é a tese central do livro "Greater Expectations" (Expectativas Maiores), do psicólogo e pedagogo William Damon, lançado em 15 de fevereiro pela editora The Free Press.
Considerado o maior especialista do país em desenvolvimento moral da criança, Damon, 49, três filhos, falou à Folha por telefone.
Ele está na Universidade de Stanford, Califórnia, costa oeste dos EUA, em ano sabático na Universidade Brown, Rhode Island, costa leste, onde dirige o Centro para o Estudo do Desenvolvimento Humano.

Folha - Por que o sr. resolveu escrever esse livro?
William Damon - Porque ninguém estava dizendo essas coisas, embora todos saibam. Em 20 anos como psicólogo infantil, tenho ouvido a maioria das pessoas dizer exatamente o contrário. Ao mesmo tempo em que ouço a defesa disseminada da ética do mundo centrado na criança, também vejo nas crianças cada vez mais apatia, autodestruição e violência. Essas crianças não são felizes. Isso me faz pensar que existe um sentido de urgência nesse debate.
Folha - O que torna as crianças atuais infelizes?
Damon - A idéia de que as crianças vão ficar estressadas, sobrecarregadas, afogadas, se nós as apressarmos com pedidos de realizações é diametralmente oposta à verdade. Mesmo quando são muito pequenas, as crianças acham o desafio a seus talentos, conhecimentos e habilidades uma experiência animadora e estimulante. São aprendizes ativas e ávidas. Quanto mais cedo as induzimos a aprender e realizar, mais naturalmente elas vão se comportar. Quanto mais tarde isso ocorrer, mais elas vão desenvolver hábitos e defesas para resistirem à exigência de realizações.
Folha - Qual a origem do comportamento pedagógico dominante hoje em dia?
Damon - Eu acho que ele é produto de uma reação legítima a um período em que as crianças eram de fato sobrecarregadas por práticas de trabalho que as exploravam, por uma falta absoluta de direitos infantis. Mas as coisas extrapolaram. Hoje, as preocupações de pais e professores são de proporcionar à criança o máximo conforto emocional possível, acatar todas as suas prerrogativas. Essa atitude não leva em conta as perspectivas de crescimento da criança como pessoa.
Folha - De que maneira proporcionar conforto pode prejudicar o crescimento da criança?
Damon - O perigo psicológico de se colocar a criança no centro de todas as coisas, de torná-la muito consciente de si própria e de seus sentimentos é que isso tira a atenção da criança de realidades sociais fundamentais às quais tem que se adaptar para poder desenvolver corretamente o caráter. A criança assim tratada tende a se colocar acima e à frente de todos os outros, a ignorar os sentimentos e as necessidade alheias. Não dar regras e orientação firmes e claras é a melhor maneira para se criar arrogância e desrespeito.
Folha - As crianças devem trabalhar em casa?
Damon - Sem dúvida que sim. A criança que ajuda na cozinha, na limpeza da casa, no cuidado dos irmãos mais novos só obtém benefícios para si e para a família. Retirar dos filhos esse tipo de obrigações já é um mal suficiente. Mas muitas famílias contemporâneas vão além e aliviam os filhos até de suas responsabilidades consigo mesmos. Eles não têm que fazer suas camas, limpar o que sujam, são levadas de automóvel a locais a que poderiam facilmente chegar a pé ou de bicicleta. Isso dá à criança um sentimento de incompetência que leva para o resto da vida. Ao subestimarem a capacidade dos filhos, esses pais limitam seu potencial de crescimento.
Folha - Como o sr. encara a questão da disciplina na escola e no lar?
Damon - Amor, cuidado e disciplina são os elementos essenciais na educação. É triste, mas previsível, que nos nossos tempos a disciplina tenha se tornado um tópico de acirrada controvérsia, quando deveria continuar sendo o que sempre foi: uma questão de simples bom senso. Eu não defendo o uso de punição física, nem de descomposturas humilhantes. Mas há sempre maneiras sábias, seguras e eficientes de se impor disciplina.
Folha - Houve uma sensível queda da qualidade dos serviços, da liderança política e da criatividade artística e acadêmica nos EUA. Esse fenômeno tem a ver com as práticas pedagógicas atuais?
Damon - Definitivamente sim. Para uma sociedade melhorar, é preciso que suas crianças tenham algum idealismo, especialmente quando jovens. É preciso que se incuta nelas um sentido de comunidade, de auto-sacrifício. É essencial que elas sejam desafiadas para serem melhores do que são. Se não, cai-se no império do cinismo desde muito cedo e não se realiza nada.

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