São Paulo, domingo, 26 de março de 1995
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O negro debaixo do tapete

FERNANDO CONCEIÇÃO
ESPECIAL PARA A FOLHA

A tarefa mais difícil do movimento negro brasileiro é fazer sentido. Numa sociedade de capitalismo dependente como o Brasil, em raros —e bastante breves— momentos da história o problema da exclusão do africano escravizado e seus descendentes se constituiu em tema prioritário do debate político.
No tricentenário do assassinato de Zumbi dos Palmares, lembrado neste ano de 1995, o país vê-se, outra vez mais, catapultado por uma crise sistêmica de dimensões planetárias. Como o "sentido da colonização" brasileira tem sido servir sempre aos interesses da metrópole —localizada no hemisfério Norte—, os demais assuntos vão para debaixo do tapete.
Há pelo menos dois fatores, complementares, que justificam a quase gratuidade do discurso reivindicatório da militância negra no Brasil. O primeiro é o fato de vivermos numa mitológica democracia racial, onde supostamente todos são tratados de forma igualitária, independentemente de sua origem étnica. O segundo fator esta relacionado ao que podemos chamar de "identidade dissolvida", que é a contrapartida ideológica daquela suposta democracia racial.
Geralmente qualquer debate, sobre quaisquer outros assuntos, pega mais que este. O descendente de africano escravizado no Brasil tem o direito de ser ressentido devido à constatação do que, para além de sua marginalidade pessoal, está a negativa tácita dos setores que direcionam a circulação de idéias em permitir que sua voz seja expressa.
O negro é tolhido assim de expressar-se como tal, transformado logo a seguir num "chato de galocha", caso insista nessa conversa. Portanto, por mais cheia de conteúdo, dados e informações, a denúncia da discriminação racial que atinge negros e mestiços de negros (45% do total da população), sempre encontra menos eco que as novas tendências do homossexualismo ou os ataques aos sobreviventes do genocídio que dizimou os aborígenes nativos.
A democracia racial, sucedânea da linha dura do evolucionismo científico que permeou o ideário burguês até pelo menos as primeiras três décadas deste século, é também ela uma proposição que se insere no darwinismo social. O que propugna é a formação de um Brasil miscigenado eurocêntrico, jamais afrocêntrico. A África, pelo ideal daquele mito, é o continente a ser esquecido, mental ou fisicamente.
Exemplo dessa abordagem foi a reação de um ilustre titular da Universidade de São Paulo, extemporaneamente candidato a reitor, ao lhe ser sugerido o intercâmbio ao revés entre estudantes brasileiros e faculdades africanas: "Estaria alguém querendo ir para lá?", perguntou o acadêmico, ainda bem que derrotado na disputa para o comando da mais cara universidade do país.
O ideal do embranquecimento, mola mestra da proposição da democracia racial extraída das teorias de Gilberto Freyre, se apraz não somente da miscigenação epidérmica. Ele se completa com a lavagem cerebral porque o negro é submetido do nascimento à morte nesta terra alheia. Isto leva ao segundo fator pelo qual o presente debate está destinado ao ralo: a impermeabilidade do interlocutor negro-mestiço, em geral, em se identificar com esse debate.
A "dissolução da identidade" negra foi o mais eficiente efeito do ideal raciodemocrático, mas sua execução é anterior ao mito gilbertofreirense. Olhe ao redor. Veja quantos de nós temos ascendência negróide, quantos descendem diretamente dos africanos escravizados neste país por eles construído, sem nada em troca. E quão inútil tem sido bater nesta tecla, que não é possível construir um projeto de nação se as elites no poder insistem em desconsiderar e marginalizar quase a metade de toda a população do país.
Violados na sua identidade, mulheres e homens afrobrasileiros carregam em algum ponto de sua mente, hereditariamente, os horrores e os terrores da escravidão e do tráfico que ajudou na cumulação primitiva do capital. Não creio que exista família negra no Brasil que não possua um ente deserdado, um "bandido" menor, um doente mental, um pária qualquer, um derrotado na vida, um suicida ou um soldado de polícia. Como nos alerta de James Baldwin, vivemos numa terra estranha. "But, in the next time, fire!" (mas na próxima vez, o fogo!).
Por se dirigir a uma democracia racial de maioria desindentificada, o movimento negro luta contra sombras. Sua luta assemelha-lhe, em certa medida, a de Dom Quixote de la Mancha —e tem-se a impressão de servir ao escárnio da minoria branca que manda no país. Somente uma tomada de posição que inclua os setores intermediários nesse embate poderia apontar na direção do elastecimento desse debate. É o que se propõe o Movimento pelas Reparações (MPR) dos descendentes de africanos escravizados no Brasil, que cobra a indenização destes, independentemente da cor de sua pele.
A guerra de emancipação total do negro não se dá simplesmente no campo cultural/alegórico, onde inclusive certos elementos e grupos hoje pontificam patrocinados por instituições diversas. Isto ocorre tanto nos Estados Unidos quanto no Brasil, e certamente também entre os brancos. Por ser própria do conflito existente dentro de uma sociedade de classes distintas, a luta deve ser também travada —e principalmente— no plano das idéias.
Para lembrar o assassinato de Zumbi muitos estarão, ainda uma vez, somente dançando e tocando tambor —o que somente acontecerá em reforço aos estereótipos atiçados sobre aqueles descendentes. O MPR aproveita este momento para propor uma aliança com os setores avançados que defendem a ampliação dos direitos humanos, visando a mobilização de toda a sociedade pelo pagamento da dívida material de US$ 6,140 trilhões.
Essa é a dívida total que o estado brasileiro tem com os 60 milhões de descendentes dos africanos que trabalharam nos 400 anos de escravidão oficial no Brasil. Até o presidente Fernando Henrique, que já declarou ser "um mulatinho com o pé na cozinha", é chamado à luta, uma vez que tem direito aos seus US$ 102 mil individuais.

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