São Paulo, domingo, 26 de março de 1995
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O CINEMA MORRE DE VELHO

GUILLERMO CABRERA INFANTE
ESPECIAL PARA A FOLHA

O cinema, arte do século 20 por excelência, é a única arte que nasceu de uma tecnologia. É verdade que para se fazer uma escultura é preciso um cinzel e um martelo, utensílios prévios, mas, antes do mármore e da pedra, figuras de barro cozido já eram moldadas (quem inventou o fogo, Prometeu?), ou entalhadas na madeira com uma faca —uma simples lâmina era suficiente. Não foi necessário o monolito negro de 2001 para que o homem pré-histórico aprendesse a fazer arte, como em Altamira. O óleo, uma nova técnica inventada no Renascimento, teve seu precedente na têmpera e no carvão, cujas origens se perdem na Antiguidade. A arquitetura começou com a primeira casa feita para se deixar a caverna, enquanto a música, já no mundo mitológico, dispunha da charamela ou flauta de Pã, e todos, mais à mão, da voz humana.
Só o cinema foi possível graças a um avanço da tecnologia. Que reside, na verdade, na imperfeição fisiológica da persistência na retina de uma imagem quando esta já desapareceu —ou, na invenção do cinema, quando foi substituída por outra imagem. Mas foi a fotografia —que, apesar dos museus, não é uma arte—, ao exibir algumas fotos sucessivas, que permitiu a uns poucos inventores do século passado pensar em acelerar o ritmo das imagens a 16 fotos fixas por segundo (no cinema falado elevou-se essa aceleração a 24 fotogramas por segundo e a ilusão de movimento se tornou perfeita), e assim fazer dos artefatos que brincavam com as sombras (chinesas ou não) aparelhos surpreendentes pela eficácia na criação de ilusões não muito distantes de um brinquedo ou, então, de um espetáculo de mágica. Um desses videntes que nos permitiram ver foi Thomas Alva Edison. Era chamado, sem ditirambo, de mago de Menlo Park.
Edison, que tinha inventado a lâmpada incandescente (sem a qual não haveria projeção de filmes) e o fonógrafo (que seria central no cinema falado), inventou também a câmera de cinema —com a ajuda de George Eastman, o homem da Kodak, criador do filme de 35 milímetros, essencial para o cinema (e usado ainda hoje). Mas Edison, que era um inventor desdenhoso, disse de um de seus inúmeros inventos: "O fonógrafo jamais reproduzirá a voz de soprano". Pace Maria Callas.
Se o cinema não é uma invenção, mas um processo, no qual colaboraram Edison, Eastman e os irmãos Lumière (para não mencionar os inventores anteriores, que criaram o fenaquistiscópio, o zootrópio e o desenho animado do cego belga Plateau), o resultado final de uma filmagem, do filme, da película, da fita ou como quer que se chame, é um esforço coletivo do fotógrafo antes de qualquer outro (não há filme sem fotografia), depois do diretor, que pode ser um gênio ou um megalomaníaco obtuso ou um simples artesão, dos atores e dos incontáveis técnicos por trás da câmera, do certeiro foquista e dos anônimos eletricistas, das atentas maquiladoras, dos homens e mulheres do vestuário e do guarda-roupa, de todos —todos colaboram na fabricação de um mesmo produto, que até então foi projeto e agora pertence ao produtor e, talvez, ao público.
A estética francesa dos anos 50, chamada la politique des auteurs (o diretor como autor), que não era mais que a política dos amateurs para se tornarem profissionais, deixou de ser verdade. Quer dizer, sempre foi mentira, mas as mentiras críticas francesas têm o charme elegante de Paris e duram apenas um verão de fidelidade. (Veja-se todos os "ismos" que rimam com "istmo", que é uma passagem estreita).
Edison logo se desinteressou do cinema, que para ele não passava de um peep-show. Ou seja, não um espetáculo, mas algumas imagens que se viam por um buraco: o artefato agradava àqueles que se divertiam espiando por uma fechadura. Quando Méliès, o criador do cinema como espetáculo de magia, foi visitar Louis Lumière para adquirir sua câmera de projeção, recebeu de Lumière uma resposta extraordinária. "O cinema", disse ele, "é uma invenção sem futuro". No entanto, Lumière não foi apenas o inventor da filmadora, do projetor e da tela branca —ele foi ainda mais importante pela criação dos gêneros do cinema do futuro.
Na primeira projeção pública (não num cinema, mas num bilhar no qual já se cobrava entrada), foram exibidos com surpreendente competência técnica os primeiros exemplares dos gêneros do cinema. Aqui está aquele programa iniciativo. "A Saída da Fábrica" ("La Sortie des Usines", o produto que é uma mostra de sua produção, como tantos comerciais da televisão) estabelecia o gênero documental, que em cor e montagem audaz inunda agora as telinhas, e o subgênero semidocumental favorito de todos os cineastas totalitários, de Leni Riefenstahl a Lev Kuleshov.
Em "A Chegada de um Trem à Estação de La Ciotat ("L'Entrée d'un Train en Gare de La Ciotat"), pela posição da câmara e pela ausência de terceira dimensão, parecia que a locomotiva ia sair da tela e esmagar aqueles primeiros telespectadores, tomada obrigatória das séries de episódios, dos thrillers e criadora da dramaticidade do trem, o grande veículo melodramático dos primeiros 50 anos do século —e do cinema. Finalmente, com "O Jardineiro Regado" ("L'Arroseur Arrosé"), Lumière estabelece as premissas maiores da comédia futura, muda ou falada, com um objeto cotidiano que se rebela ao revelar-se.
Estas mostras da arte que nascia com sua própria invenção são o verdadeiro legado de Louis Lumière e seu Augusto irmão. Edison, que inventou uma forma de cinema (criou o primeiro estúdio, que chamou de Black Maria, aludindo à câmara escura das revelações), produziu também o primeiro filme em cores e suas invenções foram a base da indústria chamada Hollywood, de quem recebeu dupla homenagem. Em 1940, a Metro fez não apenas uma, mas duas biografias do mago de Menlo Park, "O Jovem Thomas Edison" e "Edison, o Homem", em que Mickey Rooney crescia para transformar-se em Spencer Tracy!
George Eastman, que ao inventar o filme de 35 milímetros tornou possível o quinetógrafo de Edison e também o cinematógrafo de Lumière, foi mais cético que Lumière e que Edison quanto ao futuro do cinema e se suicidou. Eastman tem seu monumento mínimo em cada rolo de filme que inserem, profissionais e aficionados, em cada câmera, mas o artefato é chamado não por seu nome mas por Kodak, vocábulo derivado de uma onomatopéia: o clique ou claque do obturador. Não houve até agora uma homenagem adequada a Louis Lumière —a não ser o conveniente apelido de Paris: "La Ville Lumière" (A Cidade Luz).
Mas todos aqueles inventores e criadores, fantasiosos e sonhadores têm seu monumento, que é seu momento nesta arte que já tem um século —e que morre para nascer de novo em seu rebento mais desprezado, mas o mais visto na história da humanidade, a televisão. O cinema morre de velho mas renasce a cada dia. Ou, como o ato sexual que é, a cada noite. O cinema é, sem sombra de dúvida, um afrodisíaco.

Tradução dos textos de Cabrera Infante feitas por JOSELY VIANNA BAPTISTA

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