São Paulo, domingo, 26 de março de 1995
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'A ignorância perseguia-me'

NAGUIB MAHFOUZ

Sou partidário do conhecimento, única via de salvação nesse oceano agitado e assustador de ignorância no qual devemos viver.
Na maioria dos casos, a fé depende da alma e do coração, mais que do espírito. Os sufistas, místicos muçulmanos que vivem o Islã nos seus aspectos espirituais e esotéricos, não a concebem assim e vivem uma experiência singular.
Passam da contemplação ao ascetismo, depois ao desnudamento e à aceitação, para chegar enfim ao conhecimento pela revelação.
Mas a experiência dos sufistas pode passar pela dúvida, que é um dos graus do não-conhecimento. O Iman Al-Ghazali, pensador muçulmano do século 11, considerado inimigo da filosofia, enquanto me parece ser um dos melhores porta-vozes dela, seguiu esse caminho.
Em suas 200 obras, ele percorreu todos os domínios do conhecimento, para finalmente chegar à dúvida filosófica que o conduziu ao sufismo, onde descobriu a Convicção.
Al-Ghazali explicava que nunca se atinge o conhecimento universal através da aprendizagem, mas através do que ele chamava "Addawq": o homem deve ter a sensação da verdade para conhecê-la. Assim, o verdadeiro conhecimento entre os sufistas consiste em viver a verdade, e não em pensá-la.
Passei por momentos de dúvida sobre minha fé quando quis submetê-la à razão, à lógica e à ciência. Como Al-Ghazali, saí desse duro período de dúvida, que durou cerca de cinco anos, com uma convicção de fé que rejeitou a razão.
Lembro-me de uma série de livros de vulgarização científica escritos por um jornalista libanês. Ela comportava obras de química, zoologia, botânica, astronomia e foi uma de minhas vias rumo ao conhecimento universal. Tirei um grande proveito disso. Uma das descobertas que me encantou literalmente foi a das vitaminas.
Mas o cientista opera no visível, e não se questiona sobre a finalidade do que vê. A lei do peso permite compreender como voar ou mergulhar na água. Mas a ciência não questiona a essência do peso nem as razões de sua existência. Eis o papel do filósofo.
Na época de Aristóteles, quando os conhecimentos científicos eram ainda relativamente simples, o filósofo podia dominar a todos eles e extrair daí uma verdade absoluta. Hoje isso é impossível.
A própria idéia de sistema filosófico desapareceu. A última filosofia que integra o Universo e os homens é certamente a de Hegel. Depois dele, a ciência recomendou à filosofia ficar em seu lugar.
Quando eu tinha 18 anos, pedi emprestada uma obra intitulada "O Novo Conhecimento". Fiquei apaixonado por esse livro. Ele tratava de todos os assuntos sobre os quais eu me questionava então, no domínio da ciência, da arte e da literatura.
Conservei esse livro durante toda minha vida. Ele faz parte daqueles que me fizeram passar da ignorância a um certo saber. Eu o reli há alguns anos. Fiquei surpreso ao constatar a que ponto seu conteúdo estava ultrapassado, e quanto ele se assemelhava a um "velho senil".
Durante muito tempo, conservei o sentimento doloroso de que, embora apaixonado, conhecia muito pouco sobre arte e literatura. Quando criança, relacionei uma série de livros importantes para ler. E, à medida que eu lia, essa lista aumentava, porque descobri obras que nem imaginava.
Muito jovem, li "Outline of Literature" (Contorno da Literatura), de Drinkwater, que analisava a literatura da Antiguidade a Proust. Então decidi ler uma obra-prima de cada grande escritor citado nesse livro. Consegui.
Mas então descobri que não podia limitar meu conhecimento de Shakespeare, ou de Dickens, ou de Molière ou de Sófocles à leitura de uma única de suas obras, mesmo sendo a melhor.
Na época, comecei também a descoberta do patrimônio árabe, do Alcorão aos grandes mestres, passando pela poesia pré-islâmica ou autores marcados pela dúvida.
Por mais que aprendesse todos os dias, eu conservava a sensação de ser perseguido pela ignorância.

O egípcio NAGUIB MAHFOUZ, 84, foi o primeiro escritor árabe a ganhar o prêmio Nobel de Literatura (1988). Suas obras narram a vida cotidiana de seu país natal.

Traduções de Berta Halpern Gurovitz

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